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Vozes da sedução, do picarismo e da negritude

Nome do Autor: Suely Reis Pinheiro

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suely@hispanista.com.br

Palavras-chave: picaresca - anomia - sedução

Minicurrículo:   Mestre em Língua Espanhola e Literaturas Hispânicas - UFRJ; Doutora em Literaturas Espanhola e Hispano-Americana - USP; Membro da Associação Internacional de Hispanistas - AIH, Associação Brasileira de Estudos Medievais - ABREM e Associação de Professores de Espanhol do Estado do Rio de Janeiro - APEERJ; Editora e Diretora da revista Hispanista; Linha de Pesquisa: Literatura e outras linguagens.

Resumo: Três autores levam a marca da tradição picaresca espanhola, aliada à sedução e à negritude: os brasileiros Aluísio Azevedo e Jorge de Lima e o cubano Nicolás Guillén. Mostra-se a sedução do negro na inovação comportamental dos personagens de Aluísio Azevedo e na rebelião do discurso poético de Nicolás Guillén, ao desarticular a linguagem hegemônica do colonizador. A voz de Jorge de Lima resgata a complexidade existencial e racial do negro e aglutina os aspectos inovadores dos citados autores.

Resumen: Tres autores llevan la marca de la tradición española, enlazada a la seducción y a la negritud: los brasileños Aluísio Azevedo y el cubano Nicolás Guillén. Se muestra la seducción del negro en la innovación comportamental de los personajes de Aluísio Azevedo y en la rebelión del discurso poético de Nicolás Guillén, cuando desarticula el lenguaje hegemónica del colonizador. La voz de Jorge de Lima rescata la complexidad existencial y racial del negro y aglutina los aspectos innovadores de los aludidos autores.

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Vozes da sedução, do picarismo e da negritude se ouvem entrelaçadas nas obras de três autores que levam a marca da tradição picaresca espanhola: o maranhense, da cidade de São Luís, Aluísio Azevedo (1857-1913), considerado um dos maiores representantes do Realismo-Naturalismo no Brasil, Nicolás Guillén (1902-1989), originário de Camagüey, a grande voz mestiça da poesia cubana do século XX e Jorge de Lima (1893-1953), marcadamente, um dos mais influentes autores da poesia folclórica nordestina brasileira, nascido na cidade de União dos Palmares, no estado de Alagoas.

Neopicaresca é a literatura que traz resíduos da picaresca tradicional espanhola, e o neopícaro dos últimos séculos é o pícaro com outros matizes. Continua fruto de antagonismos de classes, mas sob outras condições de opressão, de que resulta renovada forma de luta.

Os resíduos da picaresca no comportamento malandro do negro resultam de uma estrutura básica, onde o mais forte, o mais endinheirado, o de maior status sobrepujou e, ainda hoje, sobrepuja o mais fraco. Esta é a grande dicotomia que dominou nossa sociedade durante várias gerações, separando exploradores e explorados.

É o que se vê retratado nas mais diversas obras de cunho literário, o branco dominando o negro, aparentemente conformado, sufocando-o, tornando-o submisso, levando-o a ser, ao mesmo tempo, escravo, animal e máquina. O indivíduo que, no meio familiar, é uma pessoa, passa a ser, diante da má patronagem, um animal de carga e tração. A esse respeito depõe Gilberto Freire, em sua instigadora obra, Sobrados e Mucambos (1977,502):

Por que a máquina cara, difícil, complicada, de moer isso, de fazer aquilo, quando havia o negro fácil, simples, barato para moer isso e fazer aquilo? Por outro lado, porque a generalização do uso do cavalo -  mais fácil de nutrir, de cuidar e de conservar do que o negro ou o boi, o escravo ou a mula - quando o cavalo devia ser animal só de ação guerreira e de transporte ou de recreio só de senhor, fidalgo, de militar, havendo para o serviço das demais classes de homens, a mula, o burro, o boi, o jumento, o próprio negro? (FREIRE, 1977,502)

Portanto, cansado de servir de besta de carga e de ser despersonalizado pelo branco, depois de haver assumido um caráter total na identificação com o animal, o negro vem se metamorfoseando, no sentido étnico e moral, usando para isto toda sua inteligência e astúcia, segundo as regras do comportamento picaresco tradicional. A sua malandragem é, pois, conseqüência desses valores da sociedade que subverteram o sistema moral e a má patronagem existente nas ligações impessoais.

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Mas, sub-repticiamente, a reação acontece, lá no fundo, onde o comportamento malandro picaresco adquire um caráter de anomia que, segundo estudo de Robert Merton, Estrutura Social e Anomia, é definida como sendo a ausência de norma de comportamento numa sociedade instável. É o resultado do exagero cultural que conduz o homem a obter sucesso de qualquer maneira, desprezando o apoio emocional das regras e valendo-se da violência, da agilidade, da astúcia, ou até mesmo da sensualidade.

A reação dos indivíduos que vivem neste tipo de contexto cultural, segundo o estudo de Merton, obedece a cinco tipos de adaptação à estrutura social: a conformidade, a inovação, o ritualismo, o retraimento e a rebelião.

Inconformado com sua situação de classe oprimida e explorada, o negro afastando-se do retraimento, mecanismo de fuga, resultado do derrotismo, do quietismo e da resignação que leva à frustração, adquire, picarescamente, o caráter de inovação. Frente ao poder absoluto do branco, associado ao mundo do dinheiro e da riqueza, o negro rejeita os meios institucionalizados e aposta na aceitação das novas metas culturais da inovação do comportamento picaresco. Impedido de portar qualquer arma usada pelos senhores, investia com astúcia contra o opressor branco, vencendo-o, como diz Gilberto Freire, com a aristocracia guerreira de massa cativa. Através de meios institucionalmente proibidos, mas eficientes, aprende a dar cabeçadas, rabos-de-arraia e rasteiras da capoeiragem; junto com cabras livres e moleques de rua, adestra-se no manejo de facas e navalhas. A falta de armas de fogo e de espadas é substituída pelos movimentos de dança e luta de capoeira, com a ajuda dos pés pequenos, delicados e ágeis, na maioria das vezes, descalços, efetuando-se, assim, um gestual próprio e inovador da malandragem.

Esta agilidade inovadora do negro e do mestiço brasileiros, retratada por Aluísio Azevedo no personagem Firmo, do romance O Cortiço, é herdada do mulato de origem dita ruim, de vida fácil, o capadócio, o tocador de violão, o valentão, o capanga, o malandro dos mucambos e cortiços, inadaptado à vida e à profissão, resultado de um processo biológico de miscigenação e fazendo parte de um quadro explicado como socialmente patológico. Mas que, em verdade, faz parte da estigmação da raça e da ausência de oportunidades que resultam em uma tendência acentuada em direção ao comportamento desviado.

Firmo é uma boa mostra do malandro típico que, saindo dessa mistura, vai se transformar no malandro social. Congrega, ele, desse modo, a imagem do mulato brasileiro, imagem pessimista, síntese social do capoeira, do valente, brigador e violeiro.

Portanto, não habilitados a competir dentro dos padrões da honestidade com as oportunidades de poder e alto rendimento, o negro e o mulato passaram a fazer uso da arma picaresca, a astúcia. Para tal sempre recorreram a seus atributos físicos, seja na agilidade de seus pés na capoeira, ou nos orgiásticos dribles do futebol, ou até mesmo na cadência ritmada do samba. Vale, ainda, lembrar a beleza, a sensualidade e a atração que as mulheres negras e mulatas sempre exerceram sobre seus senhores brancos ¾ o macho de raça superior ¾ que furtivamente se encontravam com as escravas e desfrutavam das carícias que não sonhavam, ou, muitas vezes, não admitiam, encontrar nas mulheres brancas.

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Este traço de sensualidade, aliado à beleza física, é configurado por Aluísio Azevedo no personagem de Rita Baiana, quando seus meneios da mestiça melhor se acentuavam, cheias de uma graça irresistível, simples, primitiva, feita toda de pecado, toda paraíso, com muito de serpente e muito de mulher (Azevedo,1973,91). Aponta, dessa maneira, o escritor, o domínio da mulher "sub-raça" sobre o senhor branco, capaz de torná-lo mais escravo do que o mais humilde dos escravos.

Por outro lado, desse inevitável e bem sucedido processo de miscigenação com o branco, surge o mestiço ocupando lugares de destaque, auto-afirmando-se, através de representantes exponenciais nas artes e na política, gozando, por isso, de todas as vantagens da ascensão social, conseguida, astuciosamente, através do prestígio junto ao branco. Deste modo, no exercício da inovação, encontramos o mulato bem sucedido que triunfa pela sua inteligência e ambição. Ascende, ele, na camada social, torna-se "branco", bacharel e prestigiado, valendo-se sempre da insubmissão e insuflado pela vaidade de igualar-se ao branco, não somente pelos dotes físicos ¾ pés pequenos, bem feitos, finos, olhos azuis, belos de corpo e rosto, alvos, estatura alta e dentes bonitos ¾ mas tornando-se, conforme bem observou um antropólogo: des mulâtres d’un talent, d’un esprit, d’une perspicacité et d’un instruction qui leur donnent beaucoup d’importance et d’ascendant (Freire,1977,621).

Neste particular, recorte de verdadeiro documento social sobre o mulato bacharel, deixou-nos o mesmo Aluísio Azevedo, na figura do Dr. Raimundo, do romance O Mulato. O personagem, fruto muito mais de observação cotidiana do escritor, do que de simples ficção, é apresentado como autêntico representante do chamado "vigor híbrido", na descrição do seu belo perfil psicológico e antropológico. Personagem, por quem se apaixonaram tantas mulheres brancas, é minuciosamente caracterizado pelo autor:

 

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Raimundo tinha vinte e seis anos e seria um tipo acabado de brasileiro, se não foram os grandes olhos azuis, que puxara do pai. Cabelos muito pretos, lustrosos e crespos; tez morena e amulatada, mas fina; dentes claros que reluziam sob a negrura do bigode; estatura alta e elegante; pescoço largo, nariz direito e fronte espaçosa. A parte mais característica da sua fisionomia era os olhos grandes, ramalhudos, cheios de sombras azuis; pestanas eriçadas e negras, pálpebras de um roxo vaporoso e úmido; as sobrancelhas, muito desenhadas no rosto, como a nanquim, faziam sobressair a frescura da epiderme, que, no lugar da barba raspada, lembrava os tons suaves e transparentes de uma aquarela sobre papel de arroz.Tinha os gestos bem educados, sóbrios, despidos de pretensão, falava em voz baixa, distintamente, sem armar efeito; vestia-se com seriedade e bom gosto; amava as artes, as ciências, a literatura e, um pouco menos, a política (Azevedo,1978,35).

Seguindo os passos de Aluísio Azevedo, na sedução do comportamento picaresco, coloca-se o poeta cubano Nicolás Guillén, anomicamente transitando por diversa tipologia social. Guillén rejeita os valores predominantes que o inserem na conformidade como o poeta da paz, da pomba, do vôo popular, das cores, dos cantos e desliza também pela inovação.

Por conseguinte, os temas recorrentes da fraternidade se tingem de matizes epidérmicos e, desta forma, no exercício do caráter de anomia de inovação, este poeta mestiço cubano compõe uma poesia viva, colorida, musical, que nos põe já em contato com a presença negra e sensual da mulata, no lúbrico poema Piedra de Horno:

Llegan tus brazos de oro, tus dientes sanguinarios;
de pronto entran tus ojos traicionados;
tu piel tendida, preparada
para la siesta:
tu olor a selva repentina; tu garganta
gritando - no sé, me lo imagino - gimiendo
-no sé, me lo afiguro -, quejándose - no sé, supongo,
creo -;
tu garganta
profunda
retorciendo palabras prohibidas.
                                                     

Un río de promesas
desciende de tu pelo,
se demora en tus senos,
cuaja al fin en un charco de meleza en tu vientre,
viola tu carne firme de nocturno secreto.

Carbón ardiente  y piedra de horno
en esta tarde fría de lluvia y de silencio.
( GUILLÉN, 1992, p. 63) 

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Porém, no processo da desestruturação da linguagem é que se observa em Guillén uma tensão rumo ao novo espaço da anomia na categoria de rebelião. De acordo com Merton, a rebelião rejeita os valores predominantes e propõe sua substituição por novos valores em relação às metas culturais e os meios institucionalizados. A rebelião envolve, ainda, uma genuína transvaloração em que a experiência vicária da frustração conduz à total denúncia dos valores anteriormente apreciados. Deste modo, no poema El Apellido, quando os impulsos biologicamente enraizados se irrompem através do controle social, se aclara fortemente o novo tipo de adaptação. É, pois, no exercício dessa rebelião, que o autor confessa, como bom rebelde, que se acha fora da estrutura social circundante, conforme se dá a ler, em suas linhas iniciais:

Desde la escuela
Desde la escuela

Y aun antes...Desde el alba
y aun antes... Desde el alba, cuando apenas esto que veis escrito en mi
tarjeta,
era una brizna yo de sueño y llanto, esto que pongo al pie de mis poemas:desde entonces, catorce letras
me dijeron mi nombre. Un santo y seca que llevo a cuestas por la calle,
para poder hablar con las estrellas.
Tú te llamas, te llamarás...
Y luego me entregaron
esto que pongo al pie de mis poemas:
catorce letras
que llevo a cuestas por la calle,
que siempre van conmigo a todas partes. (
GUILLÉN, 1992, p. 48)

Nesta elegia familiar, Guillén traz à luz uma nova estrutura lingüística e social, profundamente modificada. Toda a rigidez emotiva do poema não é uma mutilação, como se assevera, mas, antes de tudo, um congraçamento de etnias africanas, simbolicamente representado pela arbitrária força significativa do signo lingüístico.

Soergue-se, desta maneira, Nicolás Guillén, como anti-herói da linguagem ao questionar e pôr em foco suas raízes, seu nome, a geografia, os antepassados e tudo o mais que ficou esquecido e despojado da origem africana. A voz de sua pele então se faz ouvir:

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Mirad mi escudo: tiene un baobad,
tiene un rinoceronte y una lanza.
Yo soy también el nieto,
biznieto,

tataranieto de un esclavo
.
(GUILLÉN, 1992, p. 63)

Prepara, então, a partir daí, o palco da rebelião como reação adaptativa. Primeiramente, delineia a nova estratégia de ação e repudia a lealdade à estrutura social lingüística, ao abandonar o uso exclusivo e arbitrário da linguagem conservadora do colonizador. Então, sai em busca de outro monopólio - o da sua imaginação. Ao mapear todo o patronímico africano na conjectura de sua genealogia negra, torna-se um renegado da linguagem. Antes bem colocado na vida, agora renuncia aos valores lingüísticos vigentes, o que o torna alvo da maior hostilidade entre aqueles do grupo original, porque não só lança dúvida sobre seus valores, como também significa que o grupo conservador tem sua unidade lingüística quebrada:

(Que se avergüense el amo). ¿O Kumbá?
¿Seré Yelofe? ¿Quizá Guillén Kumbá?
¿Nicolás Yelofe acaso? ¿O Kongué?
¿O Nicolás Bakongo? ¿Pudiera ser Guillén Kongué?
¿Tal vez Guillén Banguila? (
GUILLÉN, 1992, p. 63)

Assim, no processo da rebelião como um tipo de adaptação que pressupõe o afastamento dos objetivos dominantes e dos padrões vigentes, os quais vêm a ser considerados como puramente arbitrários, permeia Guillén o componente lingüístico espanhol e mostra, no vaivém da etnia semântica, toda uma musicalidade, colocada lado a lado na mestiçagem lingüística africana e espanhola.

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Este jogo competitivo e rebelde já havia sido anunciado pela¨sonoridade fonêmica e onomatopéica do chamado aliterado do tambor africano em Sensemayá, cujo significado, conforme afirma o crítico José Juan Arrom, é um inequívoco signo que Guillén proporciona para que decifremos o código poético da composição e desfrutemos plenamente de sua leitura:

¡ Mayombe-bombe-mayombé !
¡ Mayombe-bombé-mayombé !
¡ Mayombe-bombé-mayombé !
(GUILLÉN, 1992, p. 20)

De fato, o mayombero o macumbeiro da linguagem, Nicolás Guillén, sabe, com sua acrobacia lingüística, não só seduzir, mas também, incitar o leitor a ouvir, na cadência ritmada de seus versos, o clamor das vozes d’África no seu Canto Negro:

¡Yambambó, yambambé ! El negro canta y se ajuma,
Repica el congo solongo,

congo, solango del Songo,
b
aila yambó sobre un pie.

Mamatomba,
serembe cuserembá.
El negro se c
anta y se ajuma,
e
l negro se ajuma y canta,
el negro canta y se va.

Acuememe serembó
       aé;
      yambó,
     aé.(
GUILLÉN, 1992, p.10)

 

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A arquitetura de seus poemas constituem-se em verdadeiras mensagens cifradas dos deuses mitológicos africanos, trazidas pela riqueza fônica, que estimulam o leitor a reconhecer, nestes recursos, a função fática da linguagem, mantenedora do prolongamento e da recuperação da comunicação com a africania distante:

Tamba, tamba, tamba, tamba,
tamba del negro que tumba;
tamba del negro, caramba,
caramba que el negro tumba:
¡ Yambá, yambó, yambambé!
(GUILLÉN, 1992, p. 10)

Com sua picardia, o poeta soube promover o enriquecimento e o rejuvenescimento semântico na integração da jitanjáfora com os novos sons e vozes africanas. Essa poesia polissêmica, que o rebelde Guillén palmilha em vários poemas, representa seu regresso à África e configura, na verdade, uma tomada de consciência de seus valores.

A linguagem que serviu de pano de fundo para buscar a identidade africana, através do notável dialogismo entre Guillén e seu passado africano, resgata uma atmosfera ancestral, já não tão misteriosa, uma vez que seus sóngoros cosongos evoluem de simples recursos fônicos e passam a traduzir todo um trabalho de integração social, étnica e cultural da raça negra, fazer maior do poeta Nicolás Guillén. Seu exotismo na linguagem assim se desenha:

Sóngoro, cosongo, sóngoro, la negra
songo be; baila bien;
sóngoro, cosongo, sóngoro de uno,
de mamey; sóngoro de tré
.(GUILLÉN, 1992, p. 2)

Em parceria com esses dois autores, surge no cenário da poesia modernista brasileira a voz inovadora do poeta Jorge de Lima, resgatando a complexidade existencial e racial do negro e aglutinando os aspectos inovadores de Aluísio Azevedo e de Nicolás Guillén, para contar a história da escravidão através de seus poemas.

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No seu famoso poema Essa Negra Fulô, desvela o mágico nas relações entre a mucama negra e a senhora, ao contar toda a participação da mulher negra e escrava na aristocracia nordestina. Dessa maneira, Jorge de Lima, no exercício da anomia da inovação, abandona o próprio contar existencial, como era costume entre os poetas, e sintetiza, através de um discurso, aparentemente infantil e lúdico, a vida da negra escrava na casa da sinhá. Os versos iniciais do poema já demonstram a inovação, uma vez que trazem fortes índices de uma história encantada e contada à maneira dos contos da carochinha:

Ora, se deu que chegou 
( isso já faz muito tempo) 
no bangüê do meu avô
uma negra bonitinha
chamada negra Fulô.

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

O contar de Jorge de Lima vai resgatando, primeiramente, de maneira bem singela, o dia biográfico da mucama:

Ó Fulô! Ó Fulô! vem ajudar a tirar
(Era a fala da Sinhá) a minha roupa, Fulô!
Vai forrar a minha cama,
pentear os meus cabelos, 

Essa negra Fulô!

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A seguir, na força cognitiva dos vocábulos, em diálogo com a história escrava, se intensificará ao final, demonstrando, por este veio, a força inovadora do poeta. Assim, se observa que o vocábulo negrinha, em forma diminutiva, embora muito usado na época com sentido depreciativo, aqui denota a simpatia do autor pela Fulô:

Essa negrinha Fulô Essa negra Fulô!
ficou logo pra mucama,
para vigiar a Sinhá Essa negra Fulô!
pra engomar pro Sinhô!

A rebelião anômica atinge autor e personagem e se estabelece através da função pragmática que permite a concretização do processo da comunicação, uma vez que o emissor-poeta e o destinatário-leitor recuperam, igualmente, a memória do passado histórico da negra escrava. Lê-se no narrar poético de Jorge de Lima não só a história da meiga e prestimosa escrava em sua gestualidade de mucama, mas também a preguiça, a indolência e a dependência da senhora, sua ama. No tom imperativo e aliterado da sinhá, os desmandos se ampliam:

Ó Fulô! Ó Fulô! 
(Era a fala da Sinhá) 
vem me ajudar, o Fulô, 
vem abanar o meu corpo 
que eu estou suada, Fulô!
vem coçar minha coceira, 
vem me catar cafuné, 
vem balançar a minha rede,
vem me contar uma história, Ó Fulô? Ó Fulô?
que eu estou con sono, Fulô! Vai botar para dormir
esses meninos, Fulô! Essa negra Fulô! 

"Minha mãe me penteou
minha madrasta me enterrou
pelos figos da figueira
que o Sabiá beliscou."

" Era um dia uma princesa 
que vivia num castelo 
que possuía um vestido 
com os peixinhos do mar. 

Entrou na perna do dum pato
saiu na perna dum pinto
 Rei-Sinhô me mandou
que vos contasse mais cinco."

Essa negra Fulô!

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Porém, a partir do orgiástico e complexo gesto de catar cafuné, regalia maior de uma escrava, quando a negra se faz mais conhecedora das intimidades da patroa, se sinaliza o jogo pícaro da rebelião, agora fortemente marcado pelo caráter intencional de roubou:

Fulô? Ó Fulô? 
(Era a fala da Sinhá
chamando a negra Fulô.) 
Cadê meu terço de ouro
Cadê meu lenço de rendas
Cadê meu cinto, meu broche,
Cadê meu frasco de cheiro 
que teu Sinhô me mandou?
Ah! Foi você que roubou!
Ah! foi você que roubou.

Tanto no tom exclamativo e no olhar vertiginoso do senhor, assim como na inquietação da senhora, intuímos a satisfação picaresca do poeta ao anunciar a embriaguez do senhor, diante da nudez da negra Fulô, concretizando-se, desta maneira, um dos princípios básicos da picaresca, qual seja, inverter desvantagem em vantagem:

O Sinhô foi ver a negra 
Levar couro do feitor. 
A negra tirou a roupa. 
O Sinhô disse: Fulô! 
(A vista se escureceu 
que nem a negra Fulô! 

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô! 

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No ritmo acelerado e reiterado do refrão vinha-se insinuando o que, fatalmente, iria acontecer - o amancebamento da mucama com o senhor. A satisfação do poeta é evidenciada por sua astúcia na habilidade verbal, cuja força cognitiva anuncia, maliciosamente, que o objeto possuído passa a ser o possuidor. Concretiza-se dupla rebelião: a do poeta e a da negra mucama. E o problema maior, que seria a mostragem do tratamento violento do branco senhor para com sua escrava, se dilui na verdade entrelinhada no poema. Essa verdade, mostrada pelo poeta com certo ar de teatralidade lingüística e do encanto sedutor da imagem insólita e decorativa, nas palavras de José Guilherme Merquior (1974,96), se faz realidade na sensualidade e no cheiro gostoso da flor-negra-Fulô:

O Sinhô foi açoitar 
sozinho a negra Fulô. 
A negra tirou a saia 
e tirou o cabeção, 
de dentro dele pulou 
nuinha a negra Fulô.
Cadê, cadê teu Sinhô
Que nosso Senhor mandou?
Ah! foi você que roubou,
foi você, negra Fulô?

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

Jorge de Lima, que antes transitara nos espaços da conformidade mística e religiosa do parnasianismo e do simbolismo, revela neste poema seu caráter inovador e rebelde. Abandona o verde-amarelismo político brasileiro da época modernista e se lança em busca da sensualidade da cor achocolatada do social afro-brasileiro.

A sedução da picaresca se efetua na inovação comportamental dos personagens de Aluísio Azevedo, o que se efetiva por meio dos traços da picaresca tradicional, a astúcia e a burla. Em Nicolás Guillén, a voz da sedução picaresca se realiza na rebelião do seu discurso poético, na medida em que o poeta dribla o discurso hegemônico do colonizador e desarticula sua linguagem. Já em Jorge de Lima, enquanto a negritude e o picarismo se inovam na astuciosa verbalidade do contar do poeta, a rebelião se pontifica no arrebatamento sensual que as linhas desse contar entrelaçam, ao mesmo tempo, autor, leitor e personagens.

 

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