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Una história de relações humanas: a traição e a curiosidade na trama de El Curioso Impertinente

Nombre del Autor: Mariana Helene Barone

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dulcineia@yahoo.com

Palabras clave: "cuento de los dos amigos", curiosidad impertinente; relaciones humanas.

Minicurrículo: Mariana Helene Barone. Licenciada en Letras (portugués y español), en 1995, por la UNESP (Universidad Estadual Paulista) de São José do Rio Preto, hace maestría en la USP (Universidad de São Paulo) desde 1996, en la área de lengua y Literaturas Española y Hispanoamericana. Calificada en septiembre del 99, hace pesquisa comparada acerca de Cervantes y Machado de Assis.

Resumo: Neste trabalho busca-se mostrar a importância da fusão de dois temas clássicos da literatura, o "conto dos dois amigos" e a curiosidade impertinente, na trama da novela cervantina El Curioso Impertinente, já essa fusão reflete-se no tratamento dado às relações humanas, um dos eixos condutores do texto.

Resumen: Este trabajo busca mostrar el influjo que tiene la fusión de dos temas clásicos de la literatura, el "cuento de los dos amigos" y la curiosidad impertinente, en la trama de la novela cervantina El Curioso Impertinente, una vez que tal fusión reflejase en el tratamiento que se dá en el texto a las relaciones humanas, uno de los ejes conductores del texto.

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Muito já se discutiu sobre a inserção de El Curioso Impertinente – e das demais histórias interpoladas – no Quixote. O tema, que já dividiu a crítica e gerou uma extensa e conflitante bibliografia, está hoje relegado a segundo plano, uma vez que, sejam quais forem suas relações com a história de Dom Quixote e com as demais inserções existentes nesta, o fato é que a novela, considerado como obra autônoma, tem seus próprios méritos e impressiona até hoje, tanto pelo argumento como pela qualidade literária.

Contrariando a opinião de Brown, que acredita haver sido El Curioso escrita especialmente com o objetivo de ser inserida no Quixote (1), boa parte da crítica a considera como mais uma das Novelas Exemplares cervantinas.

García Martín, estudando a influência cervantina nas comédias espanholas, a inclui no capítulo dedicado às Novelas Exemplares e comenta:

En realidad, [El Curioso] nos interesa como unidad autónoma y como tal la considero, pues pudo haber sido incluida perfectamente entre las Novelas Ejemplares (GARCÍA MARTÍN, 1980, p. 57).

Paz Gago, em sua análise semiótica do Quixote, afirma:

La intriga autónoma de esta novela ejemplar intercalada refleja (...) las intrigas sentimentales entre las cuales ha sido insertada (PAZ GAGO, 1995, p. 280).

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Francisco Rico, embora não a chame textualmente de "novela exemplar", levanta semelhanças entre ela e outras novelas cervantinas:

Es esta la primera novela de Cervantes que llegó a imprimirse. Obsérvese que se plantea la diferencia entre lo narrado y el modo de narrar – que se diferencia tácitamente entre fábula, trama y discurso – y se cuestiona tanto el problema de la verosimilitud como el de la respuesta del lector a lo narrado. Ideas parecidas se encuentran en El casamiento engañoso... (RICO, 1998, I, p. 423).

Já Pabst considera que o ponto comum a todas as Novelas Exemplares é o desatino que acomete todos os personagens apresentados nelas, sempre levados a viver e experimentar situações totalmente em desacordo com a sua realidade (2). Ele termina por esboçar uma "fórmula" para esse desatino:

Sin pretender formular aquí una ley general de las novelas cortas cervantinas, podría acuñarse una fórmula válida para el desatino de todos estos seres humanos. Sus rumbos parecen parábolas o semicírculos, en los que se mueven ellos, como impulsados por una fuerza desconocida, por encima de la base ideal de su próprio ser. Esta base ideal, a la que retornan, aunque no todos ellos hayan partido de ella, es el estado de sosiego y de equilibrio (...). La ruta lleva a través de un caos multicolor o tenebroso (...). Este camino es un desatino, un andar perdido, un caminar a ciegas o a tientas, una búsqueda incesante. El orden se halla siempre en la base, hacia la que retornan todas las curvas del camino, nunca el espacio mismo atravesado por el camino mismo (PABST, 1972, p.229).

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Ora, El Curioso ajusta-se perfeitamente a essa fórmula, com todos os personagens partindo de um estado de equilíbrio para o caos, que termina em uma nova ordem, totalmente diversa da inicial – sendo, portanto, cabível considerá-la como a décima terceira das Novelas Exemplares.

Além disso, ela é também uma novela densa e extremamente psicológica. Amezúa afirma sobre as Novelas Exemplares: "No llegan desde luego a la cumbre cimera de El Curioso Impertinente, las más psicológica sin duda de todas las suyas (1956, 2º v, p. 27). E isso, em uma época em que a psicologia não havia sequer sido inventada. Cervantes dedica um olhar extremamente atento ao comportamento do ser humano, suas causas e seus efeitos. Entretanto, a originalidade cervantina não está nos temas desenvolvidos, mas sim na maneira de desenvolvê-los.

Uma prova dessa afirmativa é o fato de que o texto se constrói a partir da junção de três temas clássicos da literatura: o triângulo amoroso, o "conto dos dois amigos" e a curiosidade impertinente (3).

Sobre o primeiro não nos deteremos, já que seria uma tarefa hercúlea, impertinente a este trabalho e, provavelmente, vã tentar encontrar sua origem, ou mesmo traçar uma linha evolutiva para ele, tal a quantidade de textos existentes em todas as literaturas que o aborda.

Basta dizer que é um tema bastante recorrente na obra de Cervantes, autor de triângulos tão interessantes quanto o de Timbrio, Nísida e Silério em La Galatea (onde vemos o sacrifício de um amor por uma amizade), os dois triângulos cruzados entre Cardênio, Luscinda e Dom Fernando e entre este último, Luscinda e Dorotéia, também no Quixote, onde temos – como já dito neste trabalho – por um lado a exaltação do amor e, por outro, a comprovação de sua efemeridade. Como estes, poderíamos citar muitos outros, que permeiam a obra do autor, cada qual com uma abordagem distinta, como se o autor não se cansasse de esmiuçar todos os ângulos da questão. E o triângulo que se forma em El Curioso Impertinente é, certamente, um dos mais densos produzidos pela pena cervantina, devido à profundidade psicológica com que é tratado pelo autor.

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Sobre o tema dos dois amigos Avalle-Arce dissertou primorosamente em seu ensaio Los dos amigos, que aparece em sua obra Nuevos Deslindes Cervantinos (AVALLE-ARCE, 1970, pp. 153-211). O autor faz um amplo levantamento da recorrência do tema na Península Ibérica, desde Disciplina Clericalis, de Pedro Alfonsus, publicado no final do século 12, até Dos Hombres Generosos, de José Zorilla, publicado em 1842, passando, é claro, por El Curioso Impertinente, que ele considera dentro desta linha temática.

Avalle-Arce traça a evolução sofrida pelo tema, do século XII ao XIX, onde ele interrompe seu levantamento e, a partir daí, estabelece alguns elementos básicos presentes na fábula (4) deste tipo de história: há dois amigos ricos e inseparáveis, A e B; A arrisca a vida para salvar B de uma morte certa; A e B apaixonam-se pela mesma mulher; B sacrifica seu amor pelo amigo; A casa-se com a mulher; A perde sua fortuna e busca o auxílio de B; B ajuda-o, reafirmando assim a amizade de ambos.

O autor também divide a evolução do tema em duas fases distintas. A primeira – que vai do século XII ao XVI, aproximadamente – é a do moralismo e da exemplificação, ou seja, o texto sempre contém exemplos de comportamento que o leitor deve seguir. Neles, a amizade é sempre colocada acima de tudo e preservada a qualquer custo. A matéria literária é pouco elaborada, a preocupação com o conteúdo é muito maior que a preocupação com a forma e a trama dos textos permanece praticamente no âmbito da fábula.

Na segunda fase – aproximadamente do século XVI ao XIX – abandona-se a exemplificação e o moralismo e o tema da amizade que tudo suporta passa a bastar-se por si mesmo, sem necessitar sustentar-se com lições didáticas ou morais. Segundo Avalle-Arce, "la moral didáctica se reemplaza por un exaltado himno a la amistad" (1970, p. 173). E, com isso, surge a necessidade de dar mais forma literária a matéria trabalhada. A amizade não é mais a base do texto, mas uma desculpa para que os personagens passem a viver grandes peripécias. A matéria novelística passa a ocupar o primeiro plano, as tramas se sofisticam, surgem algumas alterações nos elementos básicos da fábula anteriormente mencionados. Ainda assim, como norma geral, se mantém a reafirmação da amizade no final da história.

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Avalle-Arce cita La Galatea, a novela pastoril cervantina, como integrante desta segunda fase, considerando que a história de Timbrio e Silério, ainda que com todas as inovações que se pode esperar de um texto escrito por Cervantes, é um conto dos dois amigos típico, onde a amizade é um elemento essencial e deve ser preservado a qualquer custo.

E que esta novela será claramente retomada em El Curioso Impertinente, fato que se confirma nas primeiras linhas de ambos os textos:

Casi olvidándose a los que nos conocían el nombre de Timbrio y el de Silerio - que es el mío -, solamente los dos amigos nos llamaban (La Galatea, I, p. 738).

En la provincia que llaman Toscana vivían Anselmo y Lotario, dos caballeros ricos y principales, y tan amigos que, por excelencia y antonomasia, de todos los que los conocían los dos amigos eran llamados (DQ, I, cap. XXXIII, p. 395).

Ora, é o próprio Avalle-Arce quem afirma: "Una de las características de Cervantes es su continua vuelta a los mismos temas, para ir encarándolos desde diversos puntos de vista (AVALLE-ARCE, 1970, p. 187).

Assim, La Galatea assume uma nova importância: sendo um conto dos dois amigos "clássico", isto é, restrito às limitações de tratamento do tema estabelecidos no artigo de Avalle-Arce, a novela termina por levar um autor consciente das várias possibilidades literárias oferecidas por um único tema à pergunta evidente: o que aconteceria se um dos amigos cedesse à uma das tentações surgidas durante as peripécias e abalasse a lealdade ditada pela tradição?

A resposta a esta pergunta, segundo Avalle-Arce, foi El Curioso Impertinente, que o autor considera como "lógico desarrollo y superación del cuento de Timbrio y Silerio (...);...etapa última en el desenvolvimiento de la historia de los dos amigos, y al mismo tiempo su destrucción" (1970, pp.188-189).

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Realmente, El Curioso leva o tema às últimas conseqüências ao concretizar a deslealdade de um dos amigos para com o outro. E, ao mesmo tempo, o destrói, já que a base das histórias de dois amigos é exatamente a lealdade que a tudo resiste.

Isso nos permite traçar mais um paralelo entre a novela e o Quixote. Também a história do Cavaleiro da Triste Figura, como o intitula Sancho, é a superação do gênero das novelas de cavalaria. Tal fato ocorre naturalmente, já que no Quixote tudo que há de heróico, fantástico e lírico nas novelas de cavalaria atinge seu ponto máximo. E essa extensão de todas as características dessas novelas acaba por torná-las ridículas.

Com o Quixote surge um novo gênero literário, o romance (5). Da mesma maneira, El Curioso Impertinente determina o fim do tema dos dois amigos, ou pelo menos de qualquer inovação sofrida por ele. Ao mesmo tempo, enquadra-se também em um novo gênero, o da amizade traída.

Quanto à curiosidade impertinente como tema recorrente na literatura, García Martín vai estudá-la em uma análise na qual busca em El Curioso fontes de inspiração para a comédia espanhola do século XII (1980). Ainda que o faça com muito menos profundidade que a que Avalle-Arce dedica ao tema dos dois amigos, nem por isso a análise deixa de ser interessante. Martín afirma que: "... el asunto, tratado magistralmente por Cervantes, no es original. Tiene una larga série de antecedentes en los que pudo inspirar-se nuestro autor" (1980, p. 58).

Dos muitos exemplos que cita, García Martín destaca três como possíveis fontes para Cervantes:

Unicamente sabemos com seguridad que nuestro autor había leído las tres últimas versiones del tema, es decir, El Decamerón, El Orlando Furioso y El Crotalón. Ignoramos si había hecho lo mismo con las primeras" (GARCÍA MARTÍN, 1980, p. 60) (6).

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No Decamerón, de Boccaccio (1313-1375), o tema é desenvolvido na novela IX da jornada II, onde se conta a história do mercador Barnabé, que se gaba para os companheiros de viagem das virtudes de sua esposa Genebra e acaba apostando com um deles que, posta a prova, ela se manterá virtuosa. Ambrósio – este é o nome do companheiro – usa de um artifício para entrar em casa de Genebra e roubar uma série de objetos pessoais que serviriam como prova de sua sedução, sem entretanto conseguir, ou mesmo tentar seduzi-la de verdade. Barnabé, desesperado, ordena que um criado a mate. Este, entretanto, apieda-se dela e não o faz. A mulher foge. Alguns anos depois se descobre tudo: a farsa de Ambrósio e a honestidade da esposa. O primeiro paga seu engenho com a morte, a segunda volta a viver feliz com seu marido (BOCCACCIO, 1967, pp 237-250).

Ariosto (1474-1533) desenvolve o mesmo tema nos Cantos 42 e 43 de seu Orlando Furioso e, segundo Orozco:

...confiere al tema tradicional una dimensión mucho más honda. Focaliza las historias en el recurso de la prueba y abandona, definitivamente el motivo de jactancia (OROZCO, 1992, p. 212).

Em essência, Orlando Furioso traz, no final do Canto 42, o personagem Rinaldo convidado ao fantástico castelo de um cavalheiro que, acabado o jantar, lhe propõe que beba em um copo mágico: se conseguir fazê-lo sem derramar seu conteúdo, isto significa que sua esposa é fiel; caso contrário, ela é infiel. Depois de refletir por alguns instantes, Rinaldo recusa a oferta, que em sua opinião traz muito mais inconvenientes do que vantagens.

No Canto 43, seu anfitrião, o Doutor Anselmo, louva a sua prudência e lamenta não haver sido tão sensato quanto ele. Instigado por uma bruxa que tentava seduzi-lo, ele próprio, vários anos atrás, havia posto a prova a fidelidade da esposa. Com a ajuda da bruxa, adquiriu a aparência de um outro cavalheiro, apaixonado por sua mulher, e tentou seduzi-la. Ela cedeu finalmente, e ele então recuperou sua verdadeira aparência. Indignada com a farsa, a mulher fugiu justamente com o cavaleiro cuja aparência ele havia tomado e, desde então, o marido desesperado convidava para seu palácio todos os casados que encontrava pelo caminho, oferecendo-lhes a prova do copo. Seu único consolo era que todos eles, com exceção de Rinaldo, haviam submetido-se à prova e derrubado o vinho (ARIOSTO, 1994, 2ºv, pp. 423-437).

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Já no Crotalón, de Cristobál de Villalón (século XVII), mais precisamente no Canto III, encontramos a história de Menesarco, que põe à prova sua esposa Ginebra utilizando também um copo mágico que derrama seu conteúdo diante dos maridos traídos. Não convencido de sua inocência, toma a forma de outro homem e, desta vez, consegue seduzi-la. Nada mais é do que uma versão reduzida da escrita por Ariosto (VILLALÓN, 1990, pp. 78-120).

Sem preocupar-se com a origem ou evolução do tema, García Martín busca, através da confrontação destes e de outros textos levantados por ele uma fábula mínima comum a todos. Como resultado, há sempre um marido muito bem casado que, por algum motivo, começa a duvidar da fidelidade da esposa e decide pô-la à prova. Surge um terceiro elemento – às vezes o próprio marido disfarçado – que será o instrumento desta prova. E o

resultado desta situação é sempre desastroso para o marido, terminando na desonra e, muitas vezes, na morte, com a única exceção do Decamerón, onde a desonra é substituída pela decadência, já que Barnabé se arruina financeiramente ao perder a esposa.

García Martín afirma que a versão de Ariosto é, provavelmente, a origem de El Curioso: "¿Cuál fue, entonces, la fuente originaria de Cervantes en esta parte del asunto? No parece que fuera El Crotalón, al menos en lo relativo al marido impertinente (GARCÍA MARTÍN, 1980, p. 60).

O autor cita algumas palavras de Anselmo em El Curioso Impertinente, segundo ele fundamentais para determinar a origem do texto:

Antes tendrás que llorar contino, si no com lágrimas de los ojos, lágrimas de sangre del corazón, como las lloraba aquél simple doctor que nuestro poeta nos cuenta que hizo la prueba del vaso, que com mejor discurso se excusó de hacerla el prudente Reinaldo... (DQ, I, cap. XXXIII, p.398).

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E conclui:

Las referencias al doctor, a la prueba del vaso y a Reinaldo hacen que "nuestro poeta" no sea outro que Ariosto, y confirman que Cervantes conocía y se inspiró en su obra, en parte al menos (GARCÍA MARTÍN, 1980, p. 61).

Mas a verdade é que, embora se encontrem indubitavelmente desenvolvidos em El Curioso Impertinente estes três temas – o triângulo amoroso, o conto dos dois amigos e a curiosidade impertinente –, Cervantes inova ao unir os três temas em uma mesma história e, principalmente, em suplantá-los, usando-os não como base para o texto, mas como desculpa para as peripécias vividas por seus personagens e, principalmente, para um cuidadoso estudo da natureza humana. Orozco afirma:

La minuciosidad con la que Cervantes trata en El Curioso Impertinente la trayectoria psicológica de los personajes es ciertamente extraordinaria, y tiene un cuidado muy especial en demonstrarnos paso a paso la verosimilitud e inevitabilidad de los procesos anímicos que se desencadenan (OROZCO, 1992, p. 256).

Mas, para expor estes "procesos anímicos", Cervantes necessitava de alguns temas suficientemente envolventes para criá-los e, assim, sua escolha destes temas clássicos não é gratuita, já que eles lhe permitiriam estudar a trajetória psicológica de personagens envolvidos com fatos de fundamental importância na vida humana: o amor e a amizade.

A maioria dos críticos, embora saliente a amizade de Lotário e Anselmo na trama da novela, costuma dedicar muito mais atenção à curiosidade impertinente de Anselmo, considerada a responsável direta pela situação insustentável que vai-se criando ao longo da história.

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Entretanto, sem discordar da importância dos dois temas dentro da novela, é necessário notar que a curiosidade não é tão superior assim à amizade dentro da trama. Lotário, ainda que sentindo-se mal com a situação, lida bem com a curiosidade do amigo até concretizar a traição de sua amizade, apaixonando-se por Camila. É a partir daí que surge o descontrole da situação. Com a subversão da ordem natural das coisas, ou seja, da confiança total e mútua existente entre os dois amigos, começam as mentiras e os desencontros, que acabam levando à tragédia final. Mas Lotário continua iludindo a curiosidade do amigo, tal como fazia antes, e mais, começa a tirar proveito dela.

Se a curiosidade é a chama que vai deflagrar a catástrofe, a amizade traída será o pavio pelo qual esta chama corre até alcançar seu objetivo final. É a deslealdade, a quebra da confiança, tanto por parte do amigo como por parte da esposa, o alicerce desta trama.

Portanto, El Curioso Impertinente é uma história de relações humanas ou, mais acuradamente, uma história de destruição de relações humanas. O texto apresenta duas relações fundamentais: a amizade entre Anselmo e Lotário e o triângulo amoroso entre Anselmo, Camila e Lotário. Apresenta também duas outras relações que, embora menos significativas na trama, vão funcionar como um contraponto para estas duas: a amizade entre Camila e Leonela e o romance de Leonela com um moço da cidade.

Cervantes, utilizando-se de um mecanismo não raro em sua obra, analisa os dois extremos de um só caso. A amizade super leal dos dois se opõe à amizade interesseira que Leonela dedica a Camila; o triângulo amoroso entre os três personagens principais, com a relação idealizada entre Camila e Anselmo e a relação romântica entre Camila e Lotário se opõem à relação mais superficial e sexual da criada com seu namorado.

Assim, a curiosidade impertinente de Anselmo deflagra toda uma teia de traições latentes mas improváveis, criando uma situação que leva todas as personagens ao limite e, consequentemente, a uma morte trágica. A fusão desses dois temas clássicos temas literários, a curiosidade e a traição, faz de El Curioso, até hoje, uma das mais densas e interessantes novelas que nos deu a pena cervantina.

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NOTAS

(1) Brown, em seu estudo El Curioso Impertinente: una homilia novelesca (1881), faz uma comparação entre tema, título, tamanho e gênero entre El Curioso e a novela Rinconete e Cortadillo, citada no Quixote como outra novela existente na mesma maleta de onde saiu El Curioso Impertinente, e delineia a excelência com que esta se encaixa na história de Dom Quixote, concluindo que, por um lado, sua escolha para figurar no corpo do romance em detrimento do Rinconete não é casual; e, por outro, que ela deve ter sido alterada para ajustar-se com tanta perfeição ao texto principal.

(2) PABST, a certa altura da análise desenvolvida em seu livro La novela corta en la teoría y en la creación literaria (1972) envereda pelo mesmo rumo que Rico, buscando uma base comum a todas as Novelas Exemplares, e acaba por concluir que elas têm em comum o estudo psicológico das reações de pessoas submetidas a situações estranhas a seu modo de vida (pp. 218-237).

(3) Vários críticos referem-se a El Curioso Impertinente como mescla dos temas dos dois amigos e da curiosidade impertinente (ver GARCÍA MARTÍN: 1980, pp. 58-62; OROZCO: 1992, pp. 210-214). Embora o triângulo amoroso seja um tema bem mais genérico (e, inclusive, freqüentemente abordado por histórias que desenvolvem os outros dois temas citados), nos parece relevante devido à insistência com que Cervantes o revisita em sua obra.

(4) Emprega-se aqui a palavra de acordo com a teoria de TOMACHEVSKY: 1973, pp. 127-159), que diferencia entre fábula ("conjunto de acontecimentos ligados entre si que nos são comunicados no decorrer da obra") e trama ("o modo pelo qual as coisas que acontecem se organizam na narrativa").

(5) A este respeito, consultar a análise de PAZ GAGO (1995, pp. 265-306) sobre a influência das novelas de cavalarias na estruturação do Quixote.

(6) Emilio OROZCO, em seu ensaio La actitud impertinente, também comenta o tema da curiosidade impertinente na literatura, citando exatamente os mesmos três textos como possível fonte cervantina para El Curioso (1992, pp. 212-214)

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BIBLIOGRAFIA

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BROWN, Kenneth. "El Curioso Impertinente, una homilia novelesca". Cervantes: su obra y su mundo – Actas del I Congreso Internacional sobre Cervantes. Madrid: Edi-6, 1981, pp. 789-797.

EIKLENBAUM, CHKLOVSKI, JAKOBSON et al. Teoria da literatura. Formalistas Russos. 2ª ed. Porto Alegre: Globo, 1973.

GARCÍA MARTÍN, Manuel. Cervantes y la comedia española en el siglo XVII. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 1980.

OROZCO DIÁZ, Emilio. Cervantes y la novela del Barroco. Ed. José Lara Garrido.Granada: Universidad de Granada, 1992.

PABST, Walter. La novela corta en la teoría y en la creación literaria. Madrid: Gredos, 1972.

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VILLALÓN, Cristóbal de. El Crotalón de Cristóforo Gnofoso. Ed. Asunción Rallo. Madrid: Cátedra, 1990.

 

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