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Quando se compara a cultura do Brasil à dos demais países do Cone Sul,
o dado diferencial que logo salta aos olhos é o da questão idiomática.
Falar português ou espanhol constitui um traço identitário.
Esse fato, contudo, não consegue evitar a precariedade das
fronteiras lingüísticas, tampouco garantir a unidade interna da América
Hispânica ou da América Portuguesa, tendo-se em vista que a primeira se
subdivide em várias nações e a segunda congrega uma grande diversidade
cultural. Há outras razões engendrando as dessemelhanças: embora os
colonizadores tenham partido do mesmo espaço geográfico, político e
religioso - a Península Ibérica imperial e católica –, eles pertenciam
a diferentes experiências históricas e a circunstâncias étnico-culturais
distintas. É importante lembrar que uma das questões mais importantes na
configuração do próprio Estado português foi sua longa luta de independência
com relação ao império espanhol, fato que repercutiu
decisivamente no processo de
constituição da América Latina. Apesar de ter na Espanha uma vizinha e
aliada, Portugal também a enfrentava como adversária. Submetido ao poder
do primeiro império na História sobre o qual o sol jamais se punha,
Portugal teve que desenvolver uma política que freqüentemente oscilava
entre a aquiescência e a rebelião. Um dos fatos característicos desse
contexto foi a penetração, em
terras da América Espanhola, de portugueses traficantes de escravos,
garimpeiros, exploradores e sertanejos, seguindo o curso do Rio Amazonas e
de seus afluentes. A assinatura do tratado de Tordesilhas e seu posterior
desrespeito indicam uma curiosa política de não-enfrentamento direto dos
espanhóis, por parte dos portugueses, mas de sua neutralização por meio
de estratégias típicas da guerra de simulação. No sul da América, na
região do Rio da Prata, essa política, contudo, mostrou-se inoperante.
Tendo suas nascentes no Brasil, esse rio era considerado, pelos portugueses,
como sua propriedade natural, o que os levou a fundar às suas margens, em
1680, a Colônia do Sacramento. Portugal tentava impedir a expansão do império
espanhol em território brasileiro e ao mesmo tempo criava um posto avançado
para sua própria ocupação do solo. Ameaçados, os portenhos imediatamente
atacaram e destruíram Sacramento. Contudo, essa povoação configurou um
pequeno núcleo populacional da futura República Oriental do Uruguai, cuja
constituição também provocou disputas freqüentes entre as Américas
Portuguesa e Espanhola, de que resultaram a anexação do Uruguai por D. João
VI, sua invasão por Alvear e, finalmente, sua independência política a
partir das lutas de Lavalleja, em 1825. Mais tarde, a região platina seria
novamente convulsionada pela Guerra do Paraguai, o maior conflito armado da
América do Sul. Os projetos expansionistas de Argentina, Brasil e Uruguai
operaram com a ajuda financeira e logística da Inglaterra, a quem não
interessava a concorrência da nascente industrialização paraguaia. Entre
algumas conseqüências da luta desenvolvida no período de 1865 a 1870, além
da derrota do Paraguai, estão a queda da monarquia brasileira, o avanço
das idéias republicanas nos países da Tríplice Aliança e seu
endividamento perante a Inglaterra. Na conturbada constituição do
continente sul americano, podemos verificar, portanto, vários momentos de
conflito dos quais participou ativamente a América Portuguesa, seja em
aliança com seus vizinhos hispânicos, seja contra eles.
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Contemporaneamente,
à medida que esse passado bélico interfere nas relações entre as
culturas nacionais, é preciso discuti-lo para expurgá-lo.
Por outro lado, se a composição étnica
do continente sul americano baseia-se, fundamentalmente, na mesclagem
indígeno-européia, outra importante diferença do Brasil com relação aos
países vizinhos situa-se em sua grande população de descendência
africana. A presença de um terceiro elemento - tão estrangeiro quanto o
europeu, mas tão escravo quanto o índio - gerou a triangulação cultural
necessária para a relativização dos padrões eurocêntricos. Penetrando
no dia-a-dia do país, a África conquistou espaços em todos os territórios
portugueses: camuflou deuses negros sob os santos católicos, transfigurou
os costumes alimentares, propôs outra ética do corpo e da sexualidade,
interferiu no idioma e na pragmática das leis cotidianas.
Assim, construindo-se
numa verdadeira guerra de linguagens, a nação teve que aprender a lidar
com a categoria do estrangeiro dentro do próprio conceito de nacional, à
medida que se forjou enquanto disputa violenta de culturas vindas de fora,
de terras africanas e portuguesas, que ora se aliavam, ora se confrontavam
com os elementos autóctones. Mais tarde, a nação foi reconfigurada pelos
grandes contingentes de imigrantes europeus que buscavam “fazer a América”.
Diferentemente da América Hispânica, cada etnia brasileira não guerreava
apenas contra um único inimigo – europeu versus índio – já que
havia sempre a possibilidade de enfrentar dois rivais ao mesmo tempo ou,
pelo contrário, de fortalecer a própria posição, através da aliança
com um deles. Além de, em nosso cotidiano, podermos comprovar essa desarmônica
mesclagem, a História do Brasil também está repleta de acontecimentos em
que as desavenças entre portugueses, índios e africanos resolviam-se por
processos triangulares de combates, pactos e negociações. Essa situação,
responsável pela ruína das oposições meramente duais, enriqueceu a
perspectiva da nacionalidade com a abertura para a ocorrência de, no mínimo,
três fatores em pauta, quaisquer que fossem as circunstâncias culturais em
jogo. Tais fatos, provavelmente, devem ter interferido na configuração da
auto-imagem dos brasileiros como sujeitos que tendem à negociação, aos
acordos, à substituição do enfrentamento direto pela guerra de simulação,
dando sempre “um jeitinho” nos problemas e uma torção na lei, para o
bem e para o mal.
De qualquer forma, convivendo com intensa mistura étnica e cultural, o país
desenvolveu um olhar habituado à dessemelhança, ao desvio, à polifonia
carnavalesca. Além disso, nosso clima tropical exige uma semi-nudez
permanente, algo próximo dos hábitos indígenas e africanos e totalmente
oposto aos padrões europeus. Esse corpo quase nu colabora para que, em níveis
culturais mais amplos, ocorra aquilo que Bakhtin chamou de “contato
familiar entre os homens” em que as hierarquias e os puritanismos europeus
são atravessados pelo humor cotidiano, pelo riso carnavalesco, pelo toque
do corpo do outro com as mãos e pelo beijo triplo que incomoda os
estrangeiros. A complexidade dessa linguagem corporal, que tanto que nos
distingue, colabora para tornar anacrônicas as dualidades público/privado,
nacional/estrangeiro, eu/outro à medida que provoca sua transformação
numa terceira categoria, sincrônica, contemporânea e dionisíaca.
O modus vivendi da América Espanhola nem sempre dialoga com os
costumes da América
Portuguesa. Participando do IV Encontro de Críticos de Argentina, Brasil,
Chile e Uruguai, realizado em agosto de 2000, em Santiago do Chile, pudemos
observar a dificuldade de setores da América do Sul no sentido de
compreender os hábitos culturais do Brasil, quando um professor universitário
chileno, durante sua exposição em mesa-redonda, disse que “se pensamos
em pornografia, lembramos do Rio de Janeiro”. Tal afirmativa foi acolhida,
ao mesmo tempo, com riso e mal-estar, por um público predominantemente
hispano-americano, composto pelas delegações de Argentina, Chile e
Uruguai, mas onde também figuravam pesquisadores do Brasil. Esse fato não
teria a menor importância, se não tivesse ocorrido num evento
internacional cuja pretensão era avançar em discussões a respeito do tema
“Reinvenções da América Latina: literatura e identidade”, razão pela
qual se poderia pressupor que as questões identitárias deveriam ser
abordadas de forma menos leviana. Posteriormente, em conversa com esse
professor, não me foi apresentado nenhum argumento lógico, formal, científico
ou mesmo do senso comum, que pudesse justificar
sua atitude. As palavras do professor expressavam nada mais que um pré-conceito
- um pensamento anterior àquilo que costumamos desenvolver como
pesquisadores acadêmicos – e que só merece aqui nosso comentário
porque, na minha opinião, sintetiza maravilhosamente bem o espanto de uma
América europeizada diante de uma América africana e indígena. O contato
com a cultura hispânica da América do Sul revela como alguns de seus
setores ainda vacilam entre o olhar censor do europeu - sobre
os hábitos e falares carnavalizados de um Brasil mestiço - e sua própria
situação de mestiçagem camuflada.
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Paradoxalmente,
tal postura reforça todo um saber etnocêntrico que as teorias de
importantes pensadores hispano-americanos tanto criticam. Agredidos pela
irreverência de uma cultura híbrida, pela semi-nudez tribal que questiona
os centramentos uniformizadores e por posições que praticam
conscientemente a antropofagia cultural, certos intelectuais do sul
da América colaboram com aquilo que pretendem combater e acabam
reivindicando uma normatização rígida do cotidiano que, bem sabemos,
sempre oferece o terreno propício para a exclusão de gêneros, culturas,
opções sexuais e religiosas.
A dificuldade de dialogar com a diferença também ficou explicitada, no IV
Encontro de Críticos da América do Sul, através da quase inexistência de
estudos, por parte dos hispânicos, sobre literatura, teoria e crítica
literárias do Brasil. Curiosamente, tal fato foi ressaltado também por um
chileno, que alertava a América Espanhola sobre a necessidade de mudar sua
política em relação à América Portuguesa. Para esse pesquisador, seria
necessário criar o que ele chamou de “operación Brasil” – uma série
de medidas visando à ampliação dos diálogos entre as Américas do Sul,
que contemplasse desde a tradução e a edição
de obras da literatura brasileira no mercado hispano-americano até
uma política conjunta de pesquisas acadêmicas na região do Cone Sul. De
forma semelhante, a conhecida pesquisadora chilena Ana Pizarro ressaltou,
durante todo o evento, a necessidade de se ouvir a voz da diferença
brasileira no contexto sul americano. Pioneira de estudos dessa natureza, ao
lado do brasileiro Antonio Candido e do uruguaio Ángel Rama, Ana Pizarro
mais uma vez apontou o caminho das trocas culturais como aquele capaz de
permitir relações produtivas para quaisquer nacionalidades, no cenário
multicultural do terceiro milênio.
O fato de tais divergências terem emergido em Santiago do Chile não é
gratuito – por se tratar do quarto encontro de pesquisadores do Cone Sul,
essa reunião traduzia certo amadurecimento de determinadas posições.
Tendo sediado o terceiro encontro e participado da organização do último,
os pesquisadores brasileiros puderam acompanhar de perto um curioso processo
do qual estavam dentro e fora, ao mesmo tempo. Da mesma forma, a adoção do
ensino de língua espanhola no sistema educacional do Brasil, as traduções
e publicações de obras ensaísticas e literárias de nossos vizinhos ou a
fundação de entidades e associações que contemplam sua cultura, embora
constituam um diálogo concreto com o mundo hispânico, nem sempre
nele desencadeiam atitudes similares. O resultado disso é que,
embora o pensamento crítico brasileiro se aproprie de conceitos
desenvolvidos no interior das culturas do Cone Sul, para pensar sobre si
mesmo e sobre sua região, há dificuldades na construção de uma
reciprocidade.
Justamente porque, em relações dessa natureza, espera-se uma
contrapartida, a ausência de um movimento espontâneo de intercâmbios e de
interesse mútuo revela as barreiras lingüístico-culturais que impedem
nossos vizinhos de nos considerarem como interlocutores. Não se trata,
evidentemente, de reivindicarmos uma reverência com relação à nossa
cultura, mas de considerarmos que ela, como qualquer outra, merece a atenção
devida àquele com quem se fala. Noutras palavras, um processo intercultural
requer a audição do discurso do outro para que haja um alocamento dos
sujeitos em universos lingüístico-ideológicos que se cruzem e que propiciem uma sintaxe articuladora de
diferenças. Saber o que diz o outro é, portanto, a condição básica do
diálogo. E, para saber o que o outro diz, é preciso ouvi-lo, isto é,
considerá-lo enquanto sujeito com demandas específicas, posturas próprias,
falares distintos. Se tais dificuldades, por um lado, podem ser explicadas
pelas históricas refregas entre Portugal e Espanha, das quais somos
herdeiros diretos, por outro lado, nada justifica que essa situação
permaneça, seja por acordos tácitos ou por espírito arrivista. Exatamente
porque descendemos de uma cultura fálica, logocêntrica e colonialista é
que podemos fazer sua crítica de forma radical, ou seja, a partir de uma
auto-crítica que possa identificar e adulterar, em nós mesmos, as marcas
do excluído e do excludente, permitindo-nos
recusar a situação de escravo sem desejar o papel de senhor.
Libertados dos processos coloniais impostos pela Europa, corremos o risco de
repeti-los indefinidamente entre nós mesmos, a não ser que tenhamos a paciência
e a sapiência, como diria Machado de Assis em “A sereníssima República”,
para construirmos novos espaços identitários, aceitando a emergência das
diversidades de cada nação, território e região.
Somente assim é que o esforço de diálogo no Cone Sul poderá render bons
frutos. Nesse caso, é preciso valorizar as iniciativas que têm sido
empreendidas, da parte de brasileiros e hispano-americanos, no sentido de
intensificar esses intercâmbios culturais. Um bom exemplo disso foi a edição
consecutiva, no Brasil, de obras que estimulavam o diálogo entre textos de
autores argentinos, uruguaios, chilenos e brasileiros. A primeira publicação,
intitulada Palavras ao sul – seis escritores latino-americanos
contemporâneos,
constituiu-se como texto híbrido: além de ser composto de entrevistas, crônicas,
contos e fragmentos de romances inéditos de autores da Argentina (Ricardo
Piglia), do Brasil (Rubem
Fonseca e Sérgio Sant’Anna), do Chile (Alberto Fuguet) e do Uruguai (Tomás
de Mattos e Rafael Courtoisie), também continha textos de ensaístas
brasileiros. A segunda publicação, sob o título Literatura e estudos
culturais
(PósLit/FALE/UFMG, 2000) reuniu os textos apresentados por argentinos,
brasileiros e uruguaios no terceiro encontro de críticos latino-americanos,
realizado na Universidade Federal de Minas Gerais, em 1988, com apoio de
pesquisadores da Universidad de Buenos Aires e da Universidad de la República
del Uruguay. Essa coletânea divulgou o resultado de vários debates em
torno do tema “A literatura no âmbito dos estudos culturais”. No
mesmo ano, sob patrocínio do Programa de Pós-Graduação em Letras:
Estudos Literários e do Núcleo de Estudos Latino-Americanos (Faculdade de
Letras, Universidade Federal de Minas Gerais), foi publicada outra coletânea,
intitulada Trocas culturais na América Latina, que congregava textos
de pesquisadores de Argentina, Brasil, Chile, Uruguai e Estados Unidos,
abordando variados temas como traduções, exílios, fronteiras e diálogos.
Outra
forma de fortalecer os intercâmbios é o projeto Margens/Márgenes.
Idealizado por pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais, da
Universidade de Mar del Plata e
da Universidade de Buenos Aires, estimulado pela ação gregária dos
escritores Ricardo Piglia e Silviano Santiago e com apoio da Rockefeller
Foundation, o projeto tem conseguido intensificar o conhecimento mútuo das
culturas argentina e brasileira. Realizando ações conjuntas em ambos os países
- seminários, publicações e eventos – a pesquisa tem como objetivo
central desenvolver o próprio conceito de margem, já explorado na
produção crítico-literária de Piglia e Santiago.
Também importante no sentido de estimular os diálogos entre as Américas
do Sul tem sido a edição da Coleção Vereda Brasil, cuja principal
finalidade é divulgar a literatura brasileira no mercado argentino.
Dirigida, conjuntamente, por pesquisadores da Universidade de Buenos Aires e
da Universidade Federal de Minas Gerais e contando com o selo da Editora
Corregidor, a coleção já traduziu e editou três obras, em 2001:
Escritos antropófagos – Oswald de Andrade; Sátiras y otras
maledicencias – Gregório de Matos; Vidas secas – Graciliano Ramos.
Todos esses textos são acompanhados de estudos críticos realizados por
ensaístas e escritores, argentinos ou brasileiros. Em contrapartida, está
em fase de elaboração um projeto similar no Brasil, cujo objetivo é
editar obras de autores argentinos pouco conhecidos entre nós.
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Outro
projeto bastante significativo concretizou-se na publicação de uma coletânea
de ensaios brasileiros, intitulada Absurdo Brasil.
Dirigida pelas professoras Florencia Garramuño e Adriana Amante, da
Universidade de Buenos Aires, a obra reúne ensaios de Flora Süssekind,
Roberto Schwarz, Silviano Santiago, Antonio Candido, Roberto Ventura, Raúl
Antelo, Heloisa Buarque de Hollanda, Ismail Xavier, Otília Arantes e Paulo
Arantes. Embora o título da antologia tenha uma conotação negativa para
olhos brasileiros, a obra ocupa um lugar pioneiro na divulgação de nosso
pensamento crítico contemporâneo e, nesse sentido, contribui decisivamente
para o aprofundamento dos diálogos na região.
Um trabalho semelhante vem sendo desenvolvido, no Brasil, por
editoras universitárias, em que se destacam UFRJ,
USP, UNESP e UFMG, e por
editoras privadas, como a Iluminuras paulista e a L&PM gaúcha, que
traduziram importantes peças ensaísticas e literárias da América Hispânica
para a língua portuguesa.
Várias outras iniciativas têm sido desenvolvidas, de comum acordo, no
sentido de intensificar as trocas culturais no Sul. Rapidamente, poderíamos
citar o projeto de pesquisa “
‘Aldaz navegante – a recepção da obra de Guimarães Rosa no
exterior ”, que foi idealizado em parceria com a PUCMinas e desenvolvido
durante 2000/2001, sob a coordenação de professores da Faculdade de Letras
da UFMG, mas totalmente apoiado na ativa colaboração de pesquisadores de
Argentina, Chile, Uruguai e Estados Unidos ,
sem os quais a recolha e a análise de material crítico jamais poderia ter
sido realizada.
Tais fatos indicam um crescimento sistemático e significativo das relações
entre alguns setores das Américas do Sul, especialmente num momento em que
o debate franco de nossas diferenças tem se mostrado útil no sentido de
impedir que elas se transformem em divergências. Nesse contexto, é preciso
lembrar também que o Brasil estará sempre em posição minoritária, se
considerarmos que ele constitui a única nação de língua portuguesa e
cultura fortemente africanizada
do Sul da América. Portanto, embora ocupe um terço do território
continental, o país constitui uma curiosa minoria, formada por milhões de
habitantes e cujas experiências identitárias potencialmente mais ricas –
já que, em termos críticos, estão quase inexploradas
- situam-se além mar, mais na África que na Europa. Ao reivindicar um espaço
de efetivas trocas culturais, os intelectuais brasileiros não pretendem
abandonar sua condição de minoria nem camuflar sua diferença
luso-africana. As perspectivas críticas que se abrem nesse tipo de relação
intelectual destroem qualquer projeto
hegemônico, à medida que não pretendem estimular operações que sufoquem
as diferenças e imponham falsos consensos. Ao invés de estabelecer propósitos
grupais com base em critérios simplistas de
adição/subtração ou divisão/multiplicação, talvez pudéssemos
operar com uma matemática menos clássica e mais próxima dos princípios
fractais: algo que permitisse superar os tradicionais opostos excludentes e
viabilizar construções teóricas em rede. Nesse processo coletivo, em que
a interatividade desloca os lugares dos sujeitos e dos discursos, qualquer
atitude autoritária se torna inoperante, venha ela de setores majoritários
ou não.
Para
Ricardo Piglia, a solidão cultural do Brasil, no contexto sul americano,
seria parcialmente responsável pela abertura
dos brasileiros em relação a seus vizinhos. Se assim for, o desejo de
ruptura do isolamento tem obtido uma resposta cada vez mais interessante de
certos intelectuais hispano-americanos, inclusive de escritores como o próprio
Piglia ou de pesquisadoras como Pizarro, cujas obras despertam nos leitores
das Américas Portuguesa e Espanhola o desejo de saber o que começa para além
das fronteiras geográficas e culturais. Sem esse discurso, que relativiza o
nacional ao inseri-lo no contexto da região,
nossas linguagens estariam muito mais distanciadas.
Justamente porque são muitas as Américas do Sul, a cada dia parece
ser mais necessário compartilhar espaços em que se ouça o sussurro do
outro e o balbucio do futuro.
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Notas
A tentativa de unificação da Península Ibérica, sendo um velho sonho de
Castela, conseguiu transformar o império português em uma espécie de
complemento do império espanhol. Nesse rumo, foram celebrados
negócios conjuntos e casamentos entre famílias reais, além do
enfrentamento de vários inimigos comuns (mouros, piratas, franceses e
anglo-saxões). O propósito de castelhanizar Portugal gerou uma cultura
peninsular bilíngüe e a perda de autonomia desse território frente à
Espanha, após a derrota de D. Sebastião em Alcácer Quibir. De 1580 a
1640, governados pelos Felipes II, III e IV, os portugueses sofreram as
conseqüências da política externa espanhola: ataques estrangeiros ao
Brasil, às Índias Ocidentais, à costa ocidental africana e às rotas de
navegação, além de arrivismo por parte da Holanda e da Inglaterra
protestantes e perseguidas pela Inquisição espanhola. Nesse contexto, os
próprios portugueses foram acossados pelo império espanhol, sob acusação
de judaísmo, à medida que iam se estabelecendo em territórios de México,
Peru e La Plata. Mesmo após a aclamação de D. João IV, Portugal ainda
lutou contra a Espanha por 28 anos, até obter o reconhecimento de sua situação
de Estado independente, já no governo de D. Pedro, em 1668. Seria interessante refletir também sobre o papel da revista Mundo
nuevo, editada por Emir Rodríguez Monegal, que discutiu a ficção
brasileira, especialmente em seu sexto número, através de artigos
dedicados a Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Nélida Piñon. ASSIS, M. de. Papéis avulsos.Rio de Janeiro/Belo
Horizonte: Garnier, 1989. PEREIRA, M. A., SANTOS, L. A. B.
Palavras ao sul – seis escritores latino-americanos contemporâneos.
Belo Horizonte:
FALE/Autêntica, 1999. PEREIRA, M. Estudos Literários/Nelam/FALE UFMG, 2000. SANTOS, L. A. B., PEREIRA, M. A. (org.). Trocas culturais
na América Latina. Belo Horizonte:
PósLit
em Letras:
Estudos Literários/Nelam/FALE UFMG, 2000. Em seu texto “Una propuesta para el próximo milénio”,
Ricardo Piglia afirma que “Hay cierta ventaja, a veces,
en no estar en el centro. Mirar las cosas desde un lugar levemente
marginal.” Silviano
Santiago faz uma declaração semelhante: “Esse lugar, teoricamente, tem
muitas vantagens (...) nem
todos os produtos periféricos são periféricos”. Cf., respectivamente, www.clarin.com.ar/diario/especiales/viva99
e a entrevista “Autodescontrução”, editada
em Belo Horizonte, no Suplemento Literário n. 53, nov. 1999. LAERA, A., AGUILAR, G. (org.). Escritos antropófagos –
Oswald de Andrade. Coleção Vereda Brasil,
v.1.
Buenos Aires: Corregidor, 2001.
AGUILAR,G., TERRANOVA, J. N. (org.). Sátiras
y otras maledicencias – Gregório de Matos.
Coleção Vereda Brasil, v.2. Buenos Aires: Corregidor, 2001.
GARRAMUÑO, F. (org.). Vidas secas – Graciliano Ramos. Coleção
Vereda Brasil, v.3.
Buenos Aires:
Corregidor, 2001. AMANTE, A., GARRAMUÑO, F. Absurdo Brasil: polémicas en
la cultura brasileña. Buenos Aires:Biblos, 2000. Para maiores informações sobre essa pesquisa, v. PEREIRA,
M. A. Leituras de Guimarães Rosa na Argentina. In: DUARTE, L. P., ALVES, M.
T. A. (org.).Outras margens -
estudos da obra de Guimarães Rosa. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. p.
173-189. Citando Luís Felipe de Alencastro, Silviano Santiago propõe
uma interessante reflexão sobre a cultura brasileira, pautada na existência
de “um espaço aterritorial, um arquipélago lusófono composto dos
enclaves da América portuguesa e das feitorias de Angola”. Cf. SANTIAGO,
S. Artelatina (manifesto). Colóquio ABRALIC. Belo Horizonte:
FALE/UFMG, ago. 2001.
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