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“Pondera
Frei José [Padre Joseph de Acosta, Sevilha, 1590] que, como em todas
partes, o homem se sustenta primeiramente com o pão, deve haver nas Índias
algum, pois não há trigo. Porém, seus tipos e característica são
diferentes, ‘porque não se sabe que existisse cevada, mijo
[gramínea originária da Índia, comum na Espanha] ou panizo
[gramínea originária do Oriente], nem outros grãos usados para fazer
pão na Europa’. Existem outros alimentos, acrescenta, e ‘entre
todos tem o principal lugar, e com razão, o grão do milho que em
Castilha é chamado trigo das Índias, e na Itália grão da Turquia’,
tão abundante no Novo Mundo como é o trigo no velho, pois pode ser
encontrado em todos os Reinos das Índias Ocidentais”.
“Às vezes uma palavra, uma frase, um poema ou uma história soa tão
bem, soa tão perfeito que faz com que nos lembremos, pelo menos por um
instante, da substância da qual somos feitas e do lugar que é o nosso
verdadeiro lar”.
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Chicha.
Akachicha fuerte viñapu
aka.
Chicha hazer.
Akacuni.
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Chicha
[Manabí]
· açúcar
·
milho criollo [amarelo]
·
canela
·
uma folha de figo
·
cravo-da-índia
·
anis
·
baunilha
Se mói [o milho] entre
fino e grosso, em seguida se põe para ferver com a folha de figo,
canela, cravo-da-índia, anis a fogo lento, se mexe constantemente para
que não se pegue ou se defume esta bebida. Este cozimento demora uma
hora a hora e meia, e à medida que vai encorpando se vai acrescentando
água até que o milho suavize totalmente.
Esta bebida se prepara
dois dias antes do seu consumo.
Quando esteja bem suave
o milho, se põe para esfriar até que a mistura fique gelatinosa. Para
obter o líquido se pega um pano bem asseado (limpo) e se começa a
retirar a essência. Para isto se acrescenta um pouco de água (pouco a
pouco), e se vai coando parte por parte.
Se recolhe a essência e
se acrescenta à ela água fervida fresca e a baunilha a gosto, depois
adoçamos, e se começa a servi-la com biscoitos.
A Província de Manabí
é uma das províncias costeiras do Equador que se caracteriza por
possuir uma abundante vegetação tropical incluindo diversas variedades
de frutas. A presença das folhas de figo na receita da chicha
manabita é uma evidência da adaptação das tradições culturais
aos elementos presentes na natureza. |
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“É
clara a relação entre a terra, os alimentos, os objetos de barro e o
próprio homem, o qual colhe os frutos da terra, prepara-os e come em
recipientes de barro cozido e volta a terra na sua morte, muitas vezes
enterrado em um recipiente de barro”.
Chicha
de jora
[Cuenca]
· 1 libra [1/2 quilo] de jora [milho germinado]
· 12
litros de água
· 8
onzas [250 gramas] de rapadura
Dois ou três dias antes
da festa deve-se preparar a chicha em uma paila [tacho] de
bronze, em fogo a carvão ou lenha, dissolvendo primeiro a farinha moída
de jora em água fria até obter um mingau grosso que se coloca
no tacho, junto com o resto da água e a rapadura.
Enquanto isso toste em
uma frigideira uma parte de farinha de jora seca para que, ao
misturá-la com o mingau, a chicha fique com uma cor
amarelo-dourada. Acrescente ao tacho e deixe ferver lentamente durante
uma hora mais ou menos, ou seja, até que a farinha se cozinhe
completamente.
Quase ao final, ponha no
tacho uns pedaços de 30 cms de cana-de-açúcar descascada e depois chancada
com uma pedra. Continue cozinhando até que a jora forme na
superfície uma espuma chamada ticti. Esta espuma, que é bem
doce, se serve quente para os anciãos e para as crianças da família,
por ser considerada nutritiva.
Quando a chicha
que se está preparando fica de uma cor pálida e sem a doçura natural
do milho, ela é colorida e ganha sabor adicional com rapadura escura.
Retire do fogo, coe na peneira fina e deixe fermentar em um cântaro harmi-pucuchi,
pucuchidor ou borracho [bêbado]. Neste cântaro já devem
ter amadurecido várias chichas, depois de haver enxaguado-o com a própria
chicha, jamais com água. Uma vez que a chicha tenha
passado um dia e uma noite no cântaro pucuchidor, está pronta
para beber.
Quando o cântaro é
novo, a jora fermentará depois de três dias.
Muitas vezes o barro é
mais que apenas o recipiente que contém o alimento. A cerâmica utilitária,
que é parte integral da cultura regional, contribui também para dar o
sabor, o perfume e a textura ideal a algumas das comidas cuencanas como,
por exemplo, a chicha. A Província de Azuay, onde se encontra a
cidade de Cuenca, está localizada predominantemente na serra e mantém
uma forte tradição artesanal que inclui a tecelagem, os bordados, o
artesanato de palha toquilha, a joalheria e principalmente a cerâmica.
“Assim
nasceu a cerâmica, criatura da terra e do fogo, depositária da
frescura da água, e custódia da promessa perene do cereal (...) A cerâmica
(...) filha e companheira da mulher, produto do esmero e destreza das
suas mãos, confeccionada para transcorrer ao seu lado, para gastar-se
amorosa e confiantemente com a intimidade do uso, porque na criatura
humana ser e fazer consistem em perecer”.
“O
patrimônio cultural intangível emana delicioso da (...) chicha,
que as guardiãs dos segredos das avós revelam em homenagem ao paladar,
se irmana comunitariamente com os odores que saem dos tachos e caldeirões,
e, que ao alcançar nossos narizes nos anunciam, como estridentes
arautos, a chegada de repastos que solenizarão celebrações com sabor
de passado inesgotável”.
Glosario de
ecuatorianismos
Chancar:
triturar.
Chicha: bebida
fermentada de maíz.
Choclo: mazorca
de maíz tierno.
Jora:
maíz germinado.
Machacado: triturado, molido, golpeado.
Paila:
olla hecha de cobre o de metal, de boca ancha y poca altura.
Paja toquilla: [Carludovica Palmata] paja fina de los
sombreros
“Panamá”.
Pucuchidor: recipiente hondo, hecho de barro, para
fermentar bebidas. |
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Chicha
de jora
[Quito, Siglo XIX]
Se deixa o milho de
molho por quatro dias e isto se lava e se põe em uma cesta de palha
para fazer a jora regando-se com água todos os dias até que
esteja do tamanho de uma polegada [2.54 cm]; isto se mói perfeitamente
bem e se põe a cozinhar com bastante água por três ou quatro horas;
depois passa-se pela peneira colocando em um pondo madurador [cântaro]
e se deixa destapado até que esfrie; antes que esfrie se separa o que
se vai tomar e se tempera com água miel [calda leve de açúcar]’.
Quando esteja completamente frio pode-se tapar
“O consumo de bebidas
alcoólicas era um hábito comum na sociedade quitenha do século XVIII.
A população indígena preferia a chicha e sua origem é
anterior à chegada dos espanhóis. ‘Durante o período colonial sua
maior diversão parecia girar em torno do cântaro de chicha’.
Os setores populares urbanos faziam uso massivo do guarapo
[aguardente], que consistia em um caldo de cana fermentado preparado no
trapiche. Chama a atenção a ausência de referências ao guarapo
nos cadernos de receitas das damas quitenhas de fins do século XIX,
sugerindo uma forma de censura social”.
As palavras - assim como
todas as demais criações humanas - têm seus conteúdos definidos no
cotidiano das relações dos homens uns com os outros e deles com a
natureza que os abriga e lhes dá morada. Mesmo naquelas culturas que
provém das mesmas raízes e que têm histórias compartilhadas, muitas
vezes são construídos significados bastante diferenciados para as
palavras que compõem seus vocabulários básicos, assinalando as
fronteiras das suas identidades culturais.
Chicha ó caihua del
Perú, Anguria pedata, LIN. Planta que no seu país natal é
apreciada, porque seu fruto serve para fazer cataplasmas emolientes e
para comer curtidos, usando-se também as sementes para as emulsões,
assim como a Anuliria trifoliata, L. y la A. trilobata, L.
Muitas vezes os cadernos de
receitas se convertem em verdadeiros receituários médicos. Durante
muito tempo a saúde da família foi mais uma das muitas (pre)ocupações
da mulher. A própria concepção daquilo que é saudável em uma dada
sociedade - e as maneiras para alcançá-lo - constitui uma forte evidência
das construções culturais dos grupos humanos. No século XIX
equatoriano, quando a chicha não era suficiente para afastar a
tristeza, ou a fragilidade do corpo, havia outras curiosas poções -
agora medicinais - que podiam ser preparados por sábias mulheres.
Obras citadas
CORTES Y MORALES, Balbino, Diccionario Doméstico. Tesoro de las
familias o Repertorio Universal de Conocimientos Útiles. Madrid:
Carlos Bailly-Bailliere, 1877. Cuarta edición. Biblioteca
Ecuatoriana Aurelio Espinosa Polit.
ESTÉS, Clarissa Pinkola, Mulheres que correm com
os lobos: mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem.
Traducción de Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
FONSECA, Denise Pini Rosalem da y VON BUCHWALD,
Patricia (editoras), Secretos de Alacena. Quito: Museo de la
Ciudad, Ediecuatorial, 1998.
FONSECA, Denise Pini Rosalem da, De la Cocina
de... Manabí. Quito: Historia y Vida, 1999.
FONSECA, Denise Pini Rosalem da, Esencia Cuencana.
Quito: UNESCO, Historia y Vida, 1999.
GONZÁLEZ HOLGUÍN, Diego, S.I., Vocabulario de La
Lengua General de Todo el Perú llamada lengua Quichua o del Inca.
Madrid: Compañía de Jesús, 1608. Fondo Jijón, Biblioteca del Museo
del Banco Central del Ecuador.
JARA HIDROVO, Efraín, “Cerámica", en MALO
GONZÁLEZ, Claudio (editor), Expresión Estética Popular de Cuenca.
Cuenca: CIDAP, 1983.
SJÖMANN, Lena, “Vasijas de barro”, en CIDAP, La
cerámica popular en el Ecuador. Cuenca: CIDAP, 1992.
TAFALLA, Juan José, “Flora Huayaquilensis”, en
ESTRELLA, Eduardo (investigación y edición), RUIZ, Hipólito y PAVÓN,
José, Flora Peruviana y Chilensis,1799-1808. Acervo del
Real Jardín Botánico de Madrid. Madrid: Ministerio de Agricultura,
Pesca y Alimentación, 1988. Biblioteca Ecuatoriana Aurelio Espinosa
Polit.
VINTIMILLA DE CRESPO, Eulalia, Viejos Secretos de
la Cocina Cuencana. Cuenca: 1993.
Publicado em
Anonim@s Latin@s No.1 - 15 de novembro de 2000 a 15 de janeiro de
2001
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