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     O romance que lê as leituras da história

Nome do Autor: Mario Miguel González

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mariogon@usp.br

Palavras-chave: literatura e história; romance histórico; novo romance histórico latino-americano.

Minicurrículo: Professor Titular de Literatura Espanhola da Universidade de São Paulo; Graduado em Letras na Universidad Católica de Córdoba; Fundador da Associação de Professores de Espanhol do Estado de São Paulo; Membro do Conselho de Redação do Anuario Brasileño de Estudios Hispánicos, bem como da "Asociación Internacional de Hispanistas"; Membro do Conselho Editorial da revista Hispanista.

Resumo: As polémicas relações entre a literatura e a história encontram no romance histórico um peculiar ponto de convergência. O romance, que libertara a história de sua confusão com o ficcional, passa a ler as leituras da história. No século XX, novas formas do romance histórico em espanhol são particularmente felizes nessa leitura: o "novo romance histórico latino-americano" e o romance espanhol que se volta para a leitura da história do franquismo.

Resumen: Las polémicas relaciones entre la literatura y la historia encuentran en la novela histórica un peculiar punto de convergencia. La novela, que libertó a la historia de su confusión con lo ficcional, pasa a leer las lecturas de la historia. En el siglo XX nuevas formas de la novela histórica en español significan especiales aciertos en esa lectura: la "nueva novela histórica latinoamericana" y la novela española volcada hacia la lectura de la historia del franquismo.

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Minhas inquietações sobre as relações entre a história e a literatura decorrem de que, no meu entender, os textos literários são fatos históricos e, ao mesmo tempo, muitas vezes são representações da história. Assim sendo, nunca me foi possível aludir aos textos literários sem levar em conta o contexto histórico em que eles se encaixam e a partir do qual ganham seu significado último. Dessa maneira, para falar de literatura precisei tornar-me um pouco, se não historiador, ao menos estudioso da história.

Por essa razão, para mim, as relações entre a literatura e a história foram sempre muito importantes e, ao mesmo tempo, bastante pacíficas. Assim, acredito que as oposições conflitivas entre ambos os fenômenos decorrem, antes de mais nada, de polarizações nascidas, talvez, de perspectivas decorrentes de vícios profissionais.

O problema, por outra parte, começa nas limitações terminológicas que, freqüentemente, afetam as ciências humanas. Neste caso, temos que, por um lado, o mesmo termo - "história" - serve para designar os acontecimentos históricos, sua determinação, a análise de suas relações e o registro escrito ou oral de tudo isso. Por outro, uma única palavra - "literatura" - designa a produção de textos ficcionais de todo tipo, bem como o estudo e a análise desse fenômeno. É necessário salientar que o principal ponto de atrito entre os dois universos está na proximidade que guardam entre si o texto narrativo historiográfico e o texto narrativo ficcional.

Essa proximidade nasce do fato de que todo texto se subordina a uma categoria mais ampla, o discurso. Isso permite que, como no caso de Hayden White, possa entender-se que historiador se serve de um instrumento que pertenceria prioritariamente ao universo da literatura (WHITE, 1978). Isto levaria a considerar a historiografia como um discurso menor, já que o texto historiográfico aponta para a univocidade, contra a equivocidade própria do texto literário.

Mesmo sendo essa subordinação improcedente, a literatura (o texto narrativo ficcional) e a história (o texto narrativo historiográfico) são discursos, que, em princípio, opõem-se radicalmente. O discurso histórico tem, de antemão, um compromisso com a verdade. Escreve-se a história para deixar registrado o que o historiador julga ser verdadeiro, isto é, sua versão dos fatos, que, dessa maneira, procura uma univocidade que evite as interpretações, bem como distinguir-se claramente de outras possíveis versões diferentes dos mesmos fatos. Por sua vez, o discurso ficcional leva em conta, basicamente, a verossimilhança.

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Assim sendo, a atitude do leitor perante ambos os textos - historiográfico e literário - será diferente. O leitor do texto historiográfico estará à procura do sentido único pretendido pelo historiador, ou seja daquilo que, para este, é a verdade dos fatos. Já o leitor do texto literário terá um papel muito mais complexo, pois deverá construir "seu" texto, escolhendo um (ou alguns) dentre os múltiplos sentidos que o texto literário pode apresentar. Para ele, a figura do emissor real (o autor) do texto será menos objetiva e poderá identificar-se com a do autor implícito, muitas vezes. A polivalência significativa implícita do texto literário levará ao conhecido fenômeno de que haja tantos textos como leitores ou, melhor, como leituras, ao ponto de se tornar impossível ler duas vezes o mesmo texto literário. Em menor grau, coisa semelhante pode acontecer com o texto historiográfico, porém apenas como desvio e não como função essencial, já que o historiador se propõe, em princípio, que haja apenas uma leitura do seu relato.

A distinção entre ambos os universos seria fácil se as possibilidades se esgotassem neste ponto. Não há dúvida, porém, de que não é assim. De fato, ao longo da história, as fronteiras nem sempre foram claras.

A fiçção narrativa em prosa levou muito tempo até atingir o status de gênero literário, como, lembro-me, salientava o mestre Antonio Candido em conferência pronunciada anos atrás no curso de Letras da USP e, depois, no seu ensaio "Timidez do romance" (CANDIDO, 1989, p.82-99). Basicamente, isso aconteceu pelo fato de não ter tido o romance um precedente consagrado entre os gêneros clássicos, como a poesía lírica, a poesía épica, a tragédia ou a comédia. O precedente do romance, como se sabe, está principalmente na falsificação da história. Geoffrey de Monmouth, em sua Historia Regum Britanniae, da primeira metade do século XI, é dos primeiros a realizar essa falsificação quando, utilizando um nome do passado bretão, Artur, faz deste uma personagem, a figura protagônica de uma história falsa que, ancorada na mitologia, substitui a épica e se espalha pela Europa. A chamada "matéria de Bretanha" permite que cada escritor vá acrescentando sua invenção, até que acaba sendo construído, séculos depois, o universo fantástico das novelas de cavalaria ibéricas. Estas, no entanto, conservam ainda a "verdade" como o fundamento de seu valor. Todas elas aparecem como obra de um "historiador" que narra fatos verdadeiros. Isto porque, na ausência de um estatuto para a narrativa ficcional, a ficção seria tida como sinônimo de falso. E o falso não poderia ter espaço em culturas presididas pela verdade como revelação divina.

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A crendice que as novelas de cavalaria supõem ou exigem no seu leitor é o que Cervantes, ao instituir o romance, ataca, talvez muito mais do que a estrutura romanesca dessas narrativas. Porque a grande novidade de Cervantes é a instauração do leitor moderno que, longe de simplesmente acreditar, duvida, julga, opina e constrói ele próprio o romance que lê.

O romance, pois, liberta a historia de sua confusão com o ficcional. E liberta a ficção da necessidade de se acreditar nela. Poderão existir agora dois leitores: o da história, que julgará com relação à verdade a comunicação e a interpretação dos fatos pelo historiador; e o do romance, que, ao julgar criticamente a narrativa em si mesma, complementará a criação literária na sua interpretação pessoal.

A outra inovação cervantina será a de instalar sua narrativa, em Dom Quixote de la Mancha, no seu próprio contexto sócio-histórico, coisa que também fizera, meio século antes, o autor anônimo de Lazarilho de Tormes. Assim, Cervantes não está correndo o risco de ser visto como um historiador - e constantemente, nessa obra, seu autor parodia a figura do "historiador" das novelas de cavalaria. Por conseguinte, Cervantes e o autor do Lazarilho de Tormes estariam construindo fatos históricos - ou seja os textos que analisam a sociedade a eles contemporânea e que podem ser entendidos como documentos nada unívocos - antes do que escrevendo história. Essa aproximação ao contemporâneo, mantida pelo romance até o século XIX e recuperada depois, terá sua contrapartida no romance histórico do Romantismo; a síntese dar-se-á quando, no século XX, um novo romance histórico venha a ler a história projetando-a sobre o presente.

O que antecede significa que, no meu entender, não cabe reduzir o romance a gênero narrativo da burguesia, pela burguesia e para a burguesia; porque o romance é, antes de mais nada, uma estrutura narrativa própria da modernidade e anterior á estruturação da burguesia como classe. Assim, há etapas na história do romance. Este, porém, basicamente, conserva-se o mesmo, do século XVI ao século XX, enquanto universo narrado numa estrutura fechada, apoiada em relações de causalidade e de significado aberto à interpretação criativa por parte de um leitor.

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Já o romance histórico deve ser considerado como uma das manifestações do romance, estruturada no Romantismo tendo como base o distanciamento cronológico com relação à realidade histórica evocada, por ele tratada com um critério de verdade; esta serve de pano de fundo à ficção, que deve se pautar prioritariamente pelo critério de verossimilhança, de modo a permitir a coexistência do histórico e do ficcional.

A possibilidade de que a história (a verdade) passasse a um primeiro plano levaria à existência de romances em que o ficcional é apenas a ambientação verossímil daquela, o que é a base do que eu entendo por "historia romanceada", como no caso dos Episodios nacionales, de Benito Pérez Galdós.

O maior desencontro do romance realista com relação ao romance histórico nascido durante o Romantismo não estará, assim, tanto no critério de objetividade (buscado tanto na "verdade" que rege as referências à história como na verossimilhança que preside o ficcional), mas sim na exigência da contemporaneidade entre a sociedade romanceada e o autor, imposta pelo Realismo do século XIX.

O romance histórico, na feliz expressão de Heloísa Costa Milton, é leitor singular dos signos da história (MILTON, 1992, p. 26 e 33). Ou seja, a história, como discurso, pré-existe ao romance histórico. Isto não permite, no entanto, afirmar, como já foi feito, que os produtos da historiografia, ao serem absorvidos pelo romance perdem sua capacidade de significação. Pelo contrário, os signos da história são retomados pelo romance histórico para multiplicar seus significados. O discurso da história deve buscar a univocidade, por ser científico; o romance histórico, porém, recupera os signos da história do universo da afirmação científica para o espaço da existência humana onde foram motivados e onde são recarregados da ambigüidade original.

O romance histórico veio reaparecer na etapa pós-realista do romance, porém agora se valendo de todos os avanços havidos na linguagem narrativa desde o Romantismo até hoje. O principal desses avanços talvez seja a ruptura da identificação da temporalidade ficcional com a temporalidade histórica. Isto leva a que o romance histórico atual trabalhe a história sem levar em conta a cronologia, base do tempo da história.

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Assim, no século XX, surpreendentemente, estamos perante um novo romance histórico que lê a história com muito maior liberdade do que o do romantismo e encurta ao máximo as distâncias entre a verdade e a verossimilhança. Dessa maneira, o romance histórico de hoje pode utilizar a verossimilhança ficcional para ler de maneira crítica a história e, às vezes, atingir por esse caminho uma verdade que os historiadores nem sempre conseguiram construir de maneira mais acabada.

Mais ainda, esse trânsito livre do romance pela temporalidade permite que este, sem deixar de ser histórico - ao se remontar ao passado - atinja o presente cujas raízes estão nesse passado. O romance histórico deixa de ser a mera evocação romântica da história para se transformar numa análise do processo histórico. Do mesmo modo, no novo romance histórico, há uma procura da verdade através da verossimilhança, que supera a separação de ambas nos dois planos do romance histórico do Romantismo. Assim sendo, fundem-se os planos histórico e ficcional, o que permite evitar o uso da história como pano de fundo ou simplesmente trazer esta ao primeiro plano, como na história romanceada.

Em língua espanhola, o reaparecimento do romance histórico no século XX acontece de maneira bem diferenciada de ambos os lados do Atlântico. O fenômeno pôde ser estudado em duas teses de doutoramento elaboradas na Universidade de São Paulo, parte de cujo corpus pertence à chamada "nueva novela histórica latinoamericana" (AÍNSA, 1991, p. 82-85). Na sua tese acima citada, Heloísa Costa Milton delimitou um amplo corpus de sete romances escritos por espanhóis entre 1928 e 1990 e de outros sete escritos por hispano-americanos entre 1975 e 1987 em volta da figura de Cristóvão Colombo. Na hora de uma seleção mais apurada, sobraram dois de cada lado. A maior qualidade indiscutível dos hispano-americanos escolhidos (El arpa y la sombra, de Alejo Carpentier, e Los perros del paraíso, de Abel Posse) decorreu, precisamente da capacidade de seus autores para escrever romances históricos longe do afã de romancear a história. Pelo contrário, trata-se de romances nos quais nós, latino-americanos do século XX, sentimo-nos dialogando com nossa história mediante a paródia desta. Os autores dos romances espanhóis selecionados (En busca del Gran Khan, de Vicente Blasco Ibáñez, e No serán las Índias, de Luisa López Vergara) foram traídos, pelo contrário, pela vontade de reescrever a história na forma de exaltação e dentro de uma limitação da narrativa à temporalidade cronológica. Cotejar ambos os conjuntos permitiu perceber a ampla possibilidade do romance histórico, sempre que a verossimilhança tenha como objetivo não a propaganda e sim a verdade. Blasco Ibáñez e López Vergara, ao colocarem a história (pesquisada às vezes com grande rigor científico) em primeiro plano, repetem a história oficial escrita pelos vencedores. Seus romances morrem vítimas da exaltação a que se destinam. Já Posse e Carpentier "tomam a história como um ponto de partida para uma reflexão crítica e contundente, sob perspectiva americana, dos significados do descobrimento", como diz Heloísa (MILTON, 1992, p. 185).

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Por esses caminhos, o romance histórico é o gênero mais próximo de fazer da literatura narrativa a história-não-oficial dos povos, particularmente dos vencidos a quem a história habitualmente negou voz.

Dentre esses vencidos, o romance histórico voltou-se, no mínimo em seis oportunidades, para Lope de Aguirre, cuja história foi contada por cronistas que foram seus cúmplices na sua frustrada rebelião. Estes, interessados em salvar a própria pele, construíram uma figura monstruosa que o romance, lendo as entrelinhas da história, pôde humanizar com menos maniqueísmo. O assunto é o objeto da tese de Antônio Roberto Esteves, muito válida como ilustração da função do romance histórico hispânico contemporâneo (ESTEVES, 1995).

Além de uma relativamente freqüente presença da personagem histórica Lope de Aguirre, explícita ou implícita na obra de diversos autores de língua espanhola, ele é o protagonista de seis romances publicados no século XX. Dois deles são de autores espanhóis: Los Marañones, de Ciro Bayo (1913) e La aventura equinoccial de Lope de Aguirre, de Ramón J. Sender (1964). Os outros quatro são de autores hispano-americanos: El camino de El Dorado, do venezuelano Arturo Úslar Pietri (1947); Daimón, do argentino Abel Posse (1978), Lope de Aguirre, príncipe de la libertad, do venezuelano Miguel Otero Silva (1979); e Crónica de blasfemos, do peruano Félix Álvarez Sáenz (1986).

Um rápido balanço desses textos leva a sentir como a literatura, mesmo quando se atém aos fatos narrados pelos cronistas, permite ver em Lope de Aguirre muito mais do que o traidor a que estes o reduziram. Humanizado, Lope de Aguirre parece-nos, graças aos romances - particularmente graças a Daimón, de Abel Posse -, um vencedor-vencido que, de alguma maneira, identifica-se aos latino-americanos que nasceríamos mais tarde, após os movimentos independentistas dos que cabe entendê-lo como precursor. Assim, o novo romance histórico cria a ponte para que essa identificação possa ser explicitada.

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Os exemplos acima não significam que, na Espanha, os romancistas que retomaram o romance histórico se limitassem a tentativas de exaltar heróis de um longínquo passado. Pelo contrário, é possível entender que na Espanha, no século XX, o bom romance histórico deixou de exigir um distanciamento cronológico dos fatos históricos e o substituiu por um distanciamento ideológico. Isso acontece já no pós-guerra civil, quando os romancistas são uma das poucas possibildades de se contar a história não oficial. Pode-se citar como exemplo dessa atitude boa parte da obra de Miguel Delibes, bem como alguns dos títulos fundamentais desse período, quais sejam Tiempo de silencio, de Luis Martín Santos (1962), ou Señas de identidad, de Juan Goytisolo (1966). No entanto, será após a morte de Franco que um novo romance histórico espanhol fará parte da revisão que se impõe com relação à história da Espanha. Assim, nos anos 70 e 80, surgirá um grande número de romances voltados para o reexame da história recente. Apenas a título de exemplo, cabe citar aqui, entre tantos outros, Las mil noches de Hortensia Romero, de Fernando Quiñones (1979), El ingenioso poeta e hidalgo Federico García Lorca asciende a los infiernos, de Carlos Rojas (1979), Los helechos arborescentes, de Francisco Umbral (1980), Luna de lobos, de Julio Llamazares (1985), ou La ciudad de los prodigios, de Eduardo Mendoza (1986).

O romance histórico talvez seja a prova de que, se a história e a literatura não precisam ser confundidas, muito menos cabe pregar a negação de um discurso próprio para cada uma delas. Isto, por sua vez, impede negar, quer seja a autonomia da história, quer seja a possibilidade de se ler a história pela mediação do romance. Em todos os casos, estaremos perante leitores, leitores que lêem leituras e que, de uma ou de outra maneira, constroem criticamente a realidade.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AÍNSA, Fernando, "La nueva novela latinoamericana". Plural, 240, 1991, p. 82-85.

CANDIDO, Antonio, A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989.

ESTEVES, Antonio Roberto, "Lope de Aguirre: da historia para a literatura". Tese de doutoramento (inédita). FFLCH/USP, 1995.

MILTON, Heloísa Costa, "As histórias da história - Retratos literários de Cristóvão Colombo". Tese de doutoramento (inédita). FFLCH/USP, 1992.

WHITE, Hyden, Tropics of Discours. Baltimore: Johns Hopkins Univ. Press, 1978.

 

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