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O Gótico na Obra Picaresca de Ariano Suassuna: o Tribunal Celeste de Auto da Compadecida |
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Nome do Autor: Suely Reis Pinheiro |
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suely@hispanista.com.br |
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Palavras-chave: gótico- literatura - cinema |
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Minicurrículo: Mestre em Língua Espanhola e Literaturas Hispânicas - UFRJ; Doutora em Literaturas Espanhola e Hispano-Americana - USP; Membro da Associação Internacional de Hispanistas - AIH, Associação Brasileira de Estudos Medievais - ABREM e Associação de Professores de Espanhol do Estado do Rio de Janeiro - APEERJ; Editora e Diretora da Revista Hispanista; Linha de Pesquisa: Literatura e outras linguagens. |
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Resumo: O trabalho mostra a presença do estilo gótico na adaptação da obra fílmica, Auto da Compadecida, do escritor brasileiro Ariano Suassuna. Apontamos como o auto se faz eco das tradições peninsulares, privilegiando a cena que representa o Tribunal Celeste com a aparição da Virgem diante dos pecadores, retomando assim uma antiga tradição do teatro cristão. Suassuna consegue fundir ao legado cristão, os intuitos de crítica social e folclore nordestino em uma mesma cena, que culmina com a compaixão da Virgem Santa para com a alma do pícaro João Grilo. |
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Resumen: El trabajo muestra la presencia del estilo gótico en la adaptación de la obra fílmica, Auto da Compadecida, del escritor brasileño Ariano Suassuna. Apuntamos como el auto se hace eco de las tradiciones peninsulares, privilegiando la escena que representa el Tribunal Celeste con la aparición de la Virgen delante de los pecadores, retomando así una antigua tradición del teatro cristiano. Suassuna consigue fundir al legado cristiano, los intentos de la crítica social y el folclore nordestino en una misma escena, que culmina con la compasión de la Virgen Santa para con el alma del pícaro João Grilo. |
Ariano Suassuna, nascido na cidade de João Pessoa, no Estado da Paraíba, é um dos maiores representantes da forte e pura raiz popular da Arte e da Literatura nordestinas. Traz ele, em sua bagagem literária, histórias cheias de brasilidade com os folhetos e os repentes do Romanceiro. Seus tipos
heróicos pertencem aos ciclos cômico, satírico e picaresco, cujos
personagens são variantes do pícaro ibérico de origem popular, dos
graciosos do teatro de Calderón de la Barca e de Lope de Vega, do Sancho
Panza e do Don Quijote. Tipos que se entrelaçam a outros da Literatura de
Cordel, do Bumba-meu-boi, do Mamulengo, da oralidade, dos desafios dos
Cantadores e dos autos populares religiosos publicados em folhetos, no
Nordeste. Foi,
portanto, a partir dessa raiz popular, que em 1955, Ariano Suassuna transpôs
para o teatro uma obra teatral
que recolhe e aglutina tradições espanholas e portuguesas, com raízes
gilvicentinas, cervantinas e picarescas, o Auto da Compadecida.
Originado do O Castigo de Soberba, um auto popular
nordestino, com forte história de origem mora, com as raízes fincadas
nesse mundo mítico mediterrâneo que é tanto peninsular como árabe-negro
e, portanto, brasileiro e nordestino (SUASSUNA, 1973, p.163). A
aproximação de Auto da Compadecida com a picaresca é
evidente, quando se observa a existência de personagens populares em seu
papel anedótico pela linguagem, pela simplicidade, pela ingenuidade, pela
fome. Ao
contar a história de João Grilo e seu companheiro de trapaças e
espertezas, Chicó, cheia de aventuras, para sobreviver à fome e à
pobreza, Ariano Suassuna resgata a imagem do pícaro clássico, Lázaro de
Tormes, cuja vida também esteve povoada do “buscarse la vida”. A partir
de sua morte, a alma deste nordestino, astuto y fraudulento, se vê perdida
e roga pela misericórdia da Virgem diante das
apelações do Diabo, que pede a justiça divina. O
autor recupera o conflito entre a Justiça e a Misericórdia com a cena do Auto
da Compadecida e apresenta um contraste entre o espiritual e o carnal,
segundo os preceitos da Idade Média, com o diálogo entre o pícaro João
Grilo e o Tribunal Celeste. Em 1999, o
texto foi adaptado para a televisão pelo diretor Miguel Arraes e a seguir
levado para as telas do cinema. É nesta bela adaptação que apontamos como
Auto da Compadecida se faz eco de tais tradições
peninsulares, privilegiando a cena que representa o Tribunal Celeste com a
aparição da Virgem diante dos pecadores, retomando assim uma antiga tradição
do teatro cristão. |
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A
riqueza policromática da cena do tribunal nos causa um deslumbramento pelo
grande efeito pictórico, oposição entre dois mundos que lembra
muito bem os pintores góticos que contrapõem à transparência luminosa das figuras sagradas, a espessura apagada
e simples dos personagens terrestres.
No
quadro do Tribunal Celeste, com a aparição do Cristo negro, Manuel, forma
bem portuguesa de Emmanuel, código semântico de Jesus está conosco
e da Virgem Maria, a Compadecida, se configura um exemplo gótico dos
retablos espanhóis: se pinta, com as imagens dos santos, um mural de cor,
de brilho, de auréolas góticas douradas, indicadoras de santidade, de
pedras preciosas e vestimentas luxuosas que se contrapõem a um outro
composto pelas figuras simples e opacas dos personagens da terra. Unem-se,
assim, a espiritualidade e a realidade. A figura de Cristo é representada de maneira régia e peremptória e com sua voz suave ele ordena que seja feita a sua vontade. E a Virgem Maria, que desliza pela cena, muito bela, habitando ao mesmo tempo, o mundo da terra e o mundo do céu, nos lembra com sua graça gótica, as figuras singelas do artista sienense, Simone Martini, com suas magistrais pinturas. |
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A Virgem Maria e o Cristo
A participação do Diabo no julgamento O
espectador atento sabe ler, na belíssima, alegórica e inusitada cena,
quando Jesus dá aos homens uma nova oportunidade de salvação, um tom didático
que alerta sobre os pecados. Assim, João Grilo, com seu discurso cheio de
picardia, é salvo pela intervenção majestosa e piedosa da Compadecida.
Jogo de trevas e luz, contraste entre o profano e o sagrado, a cena em questão
resgata, com seus entes sobrenaturais, a combinação entre o real e o fantástico,
expressão bem completa do estilo naturalista gótico. Reunindo,
desta maneira, o mundo de hoje e de ontem, esta instigadora obra, faz uma
releitura da redenção do homem por Cristo e a exaltação e
adoração da Virgem Maria, nossa eterna Compadecida.
Suassuna com o Auto da Compadecida traz de volta, o que nos salta aos olhos, o Renascimento ainda cheio de influências da Idade Média com seu ponto de vista enfocado em direção ao muralismo e o colorido das minúcias dos vitrais góticos. No calor de fortes luzes e cores, se ilumina a cena do juízo universal, reveladora que diante da morte, a sátira social, a denúncia moral e a igualdade se podem harmonizar. Além do mais, se buscam o entretenimento e o deleite que se encontram nas obras picarescas, repletas de crítica às indulgências e as orações, com a conivência de um teatro alegórico, que personifica conceitos e instituições. Bibliografia ARRAES, Guel. O Auto da Compadecida. São Paulo: Globo Filmes, 2000. BECKETT,
Wendy. História da Pintura. São Paulo: Ática, 1997. CAVALCANTI, Carlos. Conheça
os Estilos de Pintura: da pré-história ao realismo. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1967.
MENÉNDEZ PELÁEZ, Jesús. Historia de la Literatura Española. Volumen II: Renacimiento Y Barroco. León: Editorial Everest, S.A. ,1993. REIS PINHEIRO, Suely. Carlitos: A Paródia Gestual do Herói. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo. São Paulo, 1995. SARAIVA, António
José & LOPES, Óscar. História da Literatura Portuguesa. Porto:
Porto Editora, 3ª Edição. SUASSUNA. Ariano. A Compadecida e o Romanceiro Nordestino. In: Literatura Popular em versos. Estudos. R.J., MEC, Fundação Casa de Rui Barbosa, 1973. v.1. Ilustrações do filme O Auto da Compadecida
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