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Ave, Maris Stella

Nome do Autor: Denise Pini Rosalem da Fonseca

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denise@anonimoslatinos.org

Palavras-chave1. Candomblé 2. Iemanjá 3. Mollie Moore Davis

Minicurrículo: Profesora Asistente del Departamento de Servicio Social de la Pontifícia Universidade Católica da Rio de Janeiro. Doctora en Historia por la Universidade de São Paulo, concluyó la maestría en Latin American Studies en la University of Houston y la graduación en Arquitectura por la Universidade Federal do Rio de Janeiro. Su investigación, con énfasis en resistencia social e identidades culturales, incluye Bahía, Cuba, Ecuador, Jamaica y Louisiana. Es Directora de web de la asociación de artistas y artesanos latinoamericanos Anonim@s Latin@s y Editora General de la revista virtual LActitud.

Resumo:  Um estudo comparado das representações dos mitos de Iemanjá —a mais conhecida das deusas nagô e de Maria, com ênfase nos conteúdos simbólicos dos nomes, números e cores que as identificam e dos arquétipos femininos que elas encarnam, através da vida e da obra da escritora Mollie Moore Davis, da Louisiana do século XIX.

Resumen: Un estudio comparado de las representaciones de los mitos de Iemanjá —la más conocida de las diosas nagô— y de la Virgen, con base en los contenidos de los nombres, números y colores que las identifican y de los arquetipos femeninos que ellas encarnan, a través de la vida y de la obra de la escritora Mollie Moore Davis, de Louisiana del siglo XIX.

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Ave, Maris Stella
Dei Mater alma,
Atque semper virgo,
Felix coeli porta
.[i]

Salve, Estrela do Mar,
Venerável Mãe de Deus
e sempre Virgem,
Feliz porta do céu.
[ii]

Sempre pensei que o nome de Maria estivesse ligado ao mar pois, afinal, além da semelhança, a palavra Maria começa com as três letras que formam o nome do oceano. Tola suposição sobre a Sua natureza, enganosamente confirmada pela tradição, que nos ensina a receber a luz de cada dia louvando à Virgem com um alegre Salve, Estrela do Mar.  

Confesso que me custa algum esforço aceitar que o nome dAquela a quem a estrela de Belém seguiu, não tenha saído das espumas brancas que beijam a areia, presenteando-nos jóias brilhantes feitas de nácar prateado; nem do azul profundo que unifica as águas de cima com as de baixo, pontilhado por seres luminosos de formas estreladas. Admito também, que me cobra muita energia tentar decifrar a complexidade do mito de Maria, talvez, tanto quanto me custe imaginar as maravilhas desconhecidas que habitam a imensidão dos mares. 

Mas se Ela é a porta do céu, então de onde poderia vir Maria, que não fora da linha do horizonte, onde mar e firmamento se encontram, confundindo-se? Qual outro meio seria capaz de abrigar estrelas de diferentes essências, que não fosse o oceano? E quem mais poderia atrair luzes celestiais, que não fosse Maria?  

Como podem ser, o mar e Maria, diferentes? 

No entanto, o nome de Maria vem de mirra.[iii] Esta, por sua vez, é uma palavra proveniente de uma língua semítica, que chegou até nós através do grego e do latim. Mirra é um substantivo feminino usado como designação comum a duas árvores da família das burseráceas —as Commiphoras mallis e myrrha. Ambas são originárias da África, e suas resinas emanam aromas tão especiais, que delas se utilizaram povos ancestrais para produzir incensos e perfumes.[iv]  

Quem sabe tenha sido esta mais uma razão para que, em 1876, o Cardeal Lavigerie declarasse Maria a Padroeira da África, quase um retorno à sua origem. Mas, por capricho da natureza ou da história, Maria se fez também Madrinha do Brasil quando, negra, miudinha e inquebrantável, ela magicamente imergiu da matéria líquida —Nossa Senhora Aparecida— confirmando a nossa filiação mariana, através da águas.  

Nas águas brasileiras quem reina é Iemanjá — “a mãe dos peixes”. Como ocorre no Livro do Gênesis, ela —que é a água— deu vida aos habitantes dos mares e rios, pela simples ação do Verbo sobre a sua matéria. E como o princípio feminino do par criador primordial ela concebeu Orungan —que significa “no alto do céu” — o filho que foi objeto da sua maior dor. [v]  

Se o mar e a primeira das Mães d’água são inseparáveis, em que dilemas nos colocaram nossos irmãos da África ao verem em Iemanjá uma Aparecida, uma Imaculada, uma Conceição, uma Maria!  

Como podem ser, o mar e Maria, diferentes? 

No Cântico dos cânticos, um apaixonado Salomão visita a esposa, que o aguarda com as mãos umedecidas pela mirra, que o seu amor pelo marido delas extrai.  

Eu vim para o meu jardim, irmã minha esposa. 
Seguei a minha mirra com os meus aromas.[vi]
Eu me levantei para abrir ao meu amado: as minhas mãos destilaram mirra, e os meus dedos estavam cheios da mirra mais preciosa.[vii] 

Quando o Menino Deus repousa junto ao seio de sua mãe, ele é visitado por reis iluminados que Lhe presenteiam mirra como uma oferta especial de adoração.  

E entrando na casa, acharam o menino com Maria sua mãe, e prostrando-se, o adoraram: e abrindo os seus cofres, lhe fizeram suas ofertas de ouro, incenso, e mirra.[viii] 

Nas mãos da esposa, a mirra é perfume que fala de amor e devoção. Aos pés do Menino a mirra é um incenso valioso, carregado de significados sagrados. Para toda a humanidade, Maria —a mirra— é a ligação dos seres deste mundo com a Divindade. Para os povos Nagô, Iemanjá —a mãe dos peixes— é a senhora dos mares e mãe das suas criaturas, o que certamente nos inclui pois, nada mais somos, que seres criados a partir das águas primordiais. Curiosa e insistente coincidência pois, na tradição cristã, o peixe é o ideograma que simboliza o Cristo —o filho de Maria; a Divindade que viveu entre nós, por que assim o permitiu a Estrela do Mar.  

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Como podem ser, o mar e Maria, diferentes? 

A liturgia católica nos fala de um perfume agradável ao Senhor, que seria uma espécie de emanação sutil proveniente da oferta de sacrifícios pessoais que fazemos pelo nosso aprimoramento espiritual. Por uma razão muito semelhante, entre os povos mais antigos o uso ritual de perfumes foi uma prática largamente empregada para obter o apreço e os favores dos deuses. Esta prática continuou sendo repetida através dos tempos pelos ritos hebraicos e posteriormente foi incorporada pelo ritual cristão.[ix] 

Na Bahia, a cada 2 de fevereiro, quando os atabaques baterem em uníssono para louvar Nossa Senhora da Conceição, os barcos já estão carregados de oferendas aos pés de Iemanjá, onde as peças de tecidos celestes, os faiscantes espelhos e os adornos prateados estarão ladeando os sabonetes perfumados e as centenas de frascos de água-de-cheiro que tanto agradam à senhora dos mares.[x] Para a grei baiana não há maneira mais eficiente para aproximar-se da Divindade, que lavar as impurezas mundanas com uma boa dose de esforço comungado e uma abundância de sagradas e regeneradoras águas perfumadas. 

Mas os perfumes também representam os seres celestes, aqueles que coroados de estrelas se alimentam das mais aromáticas emanações humanas e, através das nossas ofertas sutis de devoção, promovem a purificação, a virtude e a regeneração dos seres.[xi] É por esta causa que Maria é mirra —um perfume— e creio que, pela mesma razão, Iemanjá se banhe, e faça banhar, em água-de-cheiro.  

O incenso, por sua vez, é um símbolo inequívoco da união da humanidade à divindade; do finito ao infinito; do mortal ao imortal. Foi com este sentido que um dos Reis Magos depositou ao lado da manjedoura a sua oferta de mirra pois, mãe e filho ali presentes —misteriosamente uma só essência— representam a nossa melhor oportunidade de chegar a entender a natureza do Ser supremo. A função sacerdotal do Cristo e de sua mãe é que permite a ambos serem portadores das nossas preces até o céu, através do caminho conhecido pela fumaça e pelo perfume da mirra e de outros incensos, quando utilizados como prova de devoção.[xii] 

Na cultura Yorubá, originária do interior da África, o litoral é lugar de destino, ele representa o término, um objetivo a alcançar.[xiii] A própria saga de Iemanjá confirma esta idéia, pois a sua dor só cessa quando ela passa a habitar a imensidão dos mares. Assim como nas culturas ligadas ao movimento celeste, o zênite significa o lugar da sublimação da condição mundana —o céu— , é possível pensar que, para os Nagô, a linha do horizonte, onde as águas se encontram, seja a morada do divino. Talvez seja esta a razão para que os saveiros carregados de pedidos e oferendas à Iemanjá deixem a praia do Rio Vermelho, em Salvador, em direção ao horizonte.[xiv] 

Se na tradição que concebeu Maria os significados do seu nome representam uma sublimação da condição humana, um meio para nos aproximarmos de Deus, uma transferência para o plano divino, quando traduzido para o imaginário Yorubá, ela não poderia ter outro nome que não fosse um sinônimo de oceano. Nossa Mãe Divina —quando negra— é o mar e conduz ao Pai as nossas súplicas, através das voláteis emanações do Seu corpo, perfumadas de maresia.

Mary era um dos nomes mais comuns das meninas nascidas nas famílias cristãs ao Sul dos Estados Unidos, em meados do século XIX. Nada mais natural que louvar à Virgem através das filhas mulheres, em um ambiente repassado pelas dificuldades e pelos perigos de uma vida vivida na fronteira.

 

Perto, muito perto, andavam os negros trazidos das ilhas caribenhas, com seus batuques, suas cantorias, suas falas ininteligíveis, seus rituais de águas, escandalosamente secretos e noturnos, a ameaçar a alma dos crentes e temerosos filhos de Maria. Como não tentar agradar à Mãe Divina para mantê-la junto ao seio da família quando, além disso, a poucas milhas de distancia, ainda havia um universo povoado por outros seres a temer: os índios bravos e selvagens.

 

Quando o pai de Mary Evelina Moore [xv], um médico de pouco sucesso no Alabama, em 1855, carregou mobília, mulher e filhos em uma carreta e rumou para o Oeste, em busca de melhores oportunidades, certamente ele desejou contar com a proteção da Santa Mãe de Deus e agradeceu a sua inspiração, por um dia haver chamado sua segunda filha de Maria.

 

Mas como as coisas são o que têm que ser, pai e mãe também haviam escolhido um segundo nome para aquela menina, uma latinizada variação do nome de Eva, negação do ideal virginal.

 

Imersa nesta ambigüidade, a menina cresceu aparentemente em desconforto com a opção dos pais. Tratada pelos familiares apenas por Mary durante toda a infância e juventude, assim que pode, ela se livrou deste nome, mantendo apenas o Evelina, anglicizado como Evelyn. Contudo, penso que esta não tenha sido uma atitude fácil, pois creio que para nenhum de nós seja muito simples assumir uma nova identidade perante o meio em que vivemos.

 

Para resolver seu dilema, a escritora justificou-se utilizando a sua arte, e produziu um livro no qual a narradora —seu assumido alterego— se livra definitivamente do indesejado nome de Mary.[xvi] Até aí, tudo nos levaria a crer que a jovem artista optara por uma vida à margem do ideal mariano, uma opção feminina perigosamente ligada ao pecado, ao desejo, ao desfrute das paixões.

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Mas aí vêm os seus primeiros versos e eles se apresentam encharcados por uma fé que transcende as respostas fáceis e as interpretações corriqueiras. Poesia de menina iluminada, eles falam de um amor supra-humano e militam numa perspectiva de igualdade muito mais profunda e santa que a de uma religiosidade de missais.

 

Mas, ouça! Um ritmo longo e jovial provoca

No vão das montanhas o seu próprio eco! Tão claro, tão denso,

Entre roliças colinas, sua alegria, ele desloca,

E flutua, como incenso, rumo ao firmamento...

 

Espaços abertos do coração – vãos

cavados por incansáveis mãos de Dúvida e Aflição –

Pudéssemos manter ali eternamente, Inocência e Fé,

 qual sagradas sentinelas, em perfeita comunhão.

Ah! Quanta dor, tanta desonra, não fugiria assustada

Ao enfrentar-se com sua pureza abençoada!

 

Os orgulhosos campos do coração – sua mais farta e bela produção!

Pudéssemos manter ali eternamente, Inocência e Amor,

Contemplando os vãos![xvii]

 

Embora suprimisse o nome de Mary, a jovem escritora não passou a chamar-se Evelyn, como seria de se esperar, pois, escolheu para si um novo nome: o de Mollie. Ora, Mollie era também um dos nomes mais freqüentes entre as escravas negras do Sul americano em meados do século XIX. Quase invariavelmente as populações escravas das plantations do Sul teriam pelo menos uma Mollie, quando estas não fossem várias, e muitas vezes, todas elas seriam membros de duas ou três gerações de mulheres da mesma família vivendo em cativeiro. 

O nome Maria, como sabemos, é usado nos conventos indiscriminadamente por todas as religiosas. Ao rebatizar-se Maria, após o renascimento iniciático, a religiosa renuncia à sua identidade de origem, submetendo-a a da sua irmandade. Ser Maria é também, portanto, sinônimo de ser irmã na fé. 

Por esta mesma razão, quando agraciados com o privilégio do Batismo, os negros do Sul dos Estados Unidos renunciavam à sua identidade de pagãos e tinham a oportunidade de se re-nomear com um nome cristão. E não foram poucos os Josés e as Marias. 

Mas Mollie, nascida Mary, fez o caminho exatamente contrário para afirmar, às avessas, o conteúdo maior do seu nome de batismo: a fraternidade na fé, a irmandade na vida, uma maternidade generosa e renunciante na sua obra. Ao nomear-se Mollie, a escritora abdicava das soluções fáceis e se declarava irmã de todos aqueles que, como ela, estavam empobrecidos, maltratados pela guerra e pelas doenças e viviam desterrados pelos fluxos da vida, o que certamente incluía aos homens e mulheres negras ao seu redor.  

Tenho sérias dúvidas sobre a inocência de Mollie no momento da escolha do seu novo nome. Talvez por esta razão, não me surpreenda constatar, que poucos autores de todos os tempos, tenham sido capazes de tratar o legado Nagô da Louisiana, com tanta empatia como o fez Mollie E. Moore. Quase uma Iemanjá. 

Por outro lado, e voltando ao dilema do começo, poucos intelectuais femininos do Sul foram tão respeitados e apreciados pelos homens e mulheres do seu sofrido tempo, como o foi a receptiva, generosa e digna escritora Mrs. M. E. M. Davis. Toda uma Maria. 

Ela semeou o seu “dever no coração de outros”, 
e cumpriu a obrigação que Deus plantara no dela.
[xviii] 

Na tradição yorubá, quando um orixá assume a tutela das nossas vidas, não há como se esquivar de viver nossas missões e os seus preços. Da mesma maneira, aquilo que algumas vezes chamamos de destino, outras vezes de karma ou até mesmo de oportunidade, tem a ver com a nossa filiação espiritual, um legado que recebemos no momento em que se concebe a nossa identidade no mundo. Literalmente, o momento em que somos nomeados.  

Mas para fazer o mito de Maria ainda mais complexo, Iemanjá —a versão negra da Mãe Divina— tem sete nomes,[xix] sete variações de uma mesma experiência humana, sete chances de auto-superação, sete caminhos que levam a Divindade. Ser filha de Iemanjá pode significar viver na perspectiva de um destes personagens da deusa, bem como pode implicar alternar, em distintos períodos da vida, experiências ligadas às várias faces da fada madrinha. Quem sabe por esta razão, para algumas pessoas seja possível até mesmo mudar de nome; viver uma nova identidade; reinventar-se periodicamente, sem jamais deixar de viverem imersas na suas próprias essências. Afinal, como já vimos, Maria quer dizer perfume, que em última instância significa essência. 

O número sete tem uma força simbólica sem precedente. Sete são os dias da semana, as cores do arco-íris, os sentidos esotéricos do Alcorão, a soma do ying com o yang, os chacras, os filhos e as filhas de Níobe, as artes liberais, os pecados capitais, as portas do Paraíso que se abrirão diante da mãe de sete filhas. O setenário no Livro do Apocalipse é a chave para o seu entendimento, pois, sete serão as igrejas, as estrelas, os Espíritos de Deus, os selos, as trombetas, os trovões, as cabeças, as calamidades, as taças, os reis, os cavaleiros...[xx]

 

O sete é o número cósmico e sagrado que representa o céu, a totalidade do espaço e do tempo, um ciclo de vida concluído, o universo em movimento, a totalidade humana, o ser humano perfeito, o pacto entre Deus e a humanidade.[xxi] O sete é Maria, subindo aos céus coroada de estrelas, e sete são as Iemanjás, usando como diadema um arco–íris na linha do horizonte.

 

Ah! Eu queria a minha mãe rever;

Mas a prece que eu sabia, aquela oração,

Eu quase nem me lembro – como seria?

Que nos perdoem as faltas, as mazelas do mundo,

Que tudo isso passe, quando a trilha de luz eu cruzar,

para ao Paraíso chegar?

 

No Paraíso! (...)

Lá não se travam batalhas!

Não se precisa de espadas ou armas como garantia![xxii] 

 

Mollie tinhas todas as razões para ser um pouco cética em relação à felicidade mundana. Aos 23 anos ela perdeu a mãe, vítima de tuberculose, e pelos próximos sete anos da sua vida, ela passou a ser a mãe dos irmãos, sete dos quais eram mais jovens que ela.[xxiii] No súbito e precoce papel de matriarca de uma vasta prole, ela não apenas soube manter a sua essência de escritora, como também tirar deste trabalho os recursos valiosos com os quais ajudou a seu pai no sustento da família.

 

Sua vida foi repassada por sucessivos re-começos e ela foi uma artista a inventar para si novos e fascinantes personagens. A cada situação que se apresentava ela se superou, seduzindo a todos com sua essência maternal, receptiva, acolhedora e confortante. Primeiro ela foi uma jovem poetisa de origem modesta, cujo talento e brilho pessoal a resgatou da pobreza para o abrigo fino e letrado do lar dos Cushings em Houston. De lá ela regressou para ser mãe dos irmãos. Mais tarde ela se casou para tornar-se a Sra. Davis, vivendo em um feliz sonho de amor que lhe negou a maternidade, com a morte de seu único bebê. Corajosa, ela inventou outra maneira de ser mãe, e adotou uma sobrinha, a quem criou como filha.

 

Jamais se abateu, sobreviveu aos duros anos da Guerra Civil como esposa e escritora no Texas. Depois, mudou-se para Nova Orleans e transformou-se na maior dama cultural da cidade. Sua casa modesta, porém elegante, na Royal Street foi um templo de arte, de convívio criativo, de amizades construídas sem barreiras de nenhuma espécie. Mas a adversidade sempre lhe rondou as portas. Ano após ano ela cumpriu um ritual de ciclos regulares de regresso ao Texas, para resguardar sua delicada saúde da estação úmida da Louisiana. E depois de tantas idas e vindas, ela sucumbiu ao câncer, imersa em dor, sem jamais perder a poesia:

 

Se não fora covardia... eu te suplicaria que reze pela minha morte[xxiv]

 

E Maria a acolheu ao amanhecer do primeiro dia de 1909, provavelmente ao som de um Ave, Maris Stella. Envolta em um manto de cetim branco, coberta por imaculados lírios e rosas brancas, ela parecia

 

A Senhora de Shalott, flutuando rio abaixo em seu saveiro florido[xxv] 

 

Como ocorreu com Iemanjá, ao morrer, Mollie foi imaginada pelos que a amavam sendo levada pela correnteza do rio para a profundeza dos mares, toda vestida de branco. Lá o azul do manto de Maria se confunde com a transparência das águas e o cristalino da abóbada celeste, pois no azul residem a pureza e a imaterialidade. Se para os homens durante muito tempo o azul significou a nobreza mundana, a Santa Virgem, com sua nobreza divina, transformou o azul em amor eterno, em verdade, no Paraíso.[xxvi]

 

Juntos, azul e branco, as cores de Maria e de Iemanjá, significam o desapego aos valores deste mundo, o encaminhamento da alma liberada em direção à Divindade, a busca do tesouro que virá ao encontro do branco virginal, quando ele cruzar a trilha de luz em seu caminho rumo ao azul celeste: o céu ou a profundeza do oceano.[xxvii] O Paraíso é apenas uma questão de geografia divina!

 

E o falso dilema se resolveria facilmente, como uma simples questão semântica, pudesse Odo Iya traduzir Ave, Maris Stella.

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NOTAS

 

[i] Ave, Maris Stella, (Salve, Estrela do Mar). Orações à Virgem Maria em: “Patrons Saints Index: Mary, Blessed Virgen”, Catholic Forum. www.catholic-forum.com.

[ii] Oração a Santa Maria que desata os nós. Orações em: Sociedade das ciências antigas. www.sca.org.br

[iii] “Patrons Saints Index: Mary, Blessed Virgen”, Catholic Forum.

[iv] Aurélio Buarque de Hollanda, Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1975. p. 929.

[v] Pierre Verger, Notas Sobre o Culto aos Orixás e Voduns.  São Paulo: EDUSP, 2000.

p. 295.

[vi] “O Cântico dos Cânticos 5, 1”, A Bíblia Sagrada. Edição Ecumênica. Rio de Janeiro: BARSA, 1977. p. 520.

[vii] “O Cântico dos Cânticos 5, 5”, A Bíblia Sagrada. p. 520.

[viii] “Evangelho de São Mateus 2, 11”, A Bíblia Sagrada. p. 2.

[ix] Jean Chevalier & Alain Gheerbrant, “Perfume”, Dicionário de símbolos. Mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 2000. Tradução de Vera Costa e Silva... [et al.], 15a. edição. Primeira edição 1982. pp. pp. 709-710.

[x] Pierre Verger, Notas Sobre o Culto aos Orixás e Voduns. p. 297.

[xi] Jean Chevalier & Alain Gheerbrant, “Perfume”, Dicionário de símbolos. p. 709.

[xii] Jean Chevalier & Alain Gheerbrant, “Incenso”, Dicionário de símbolos. p. 503-505.

[xiii] Pierre Verger, Notas Sobre o Culto aos Orixás e Voduns. p. 296.

[xiv] Pierre Verger, Notas Sobre o Culto aos Orixás e Voduns. p. 297.

[xv] Os dados biográficos aqui reproduzidos foram extraídos de: Patrícia Brady, “Mollie Moore Davis. A Literary Life”, in Dorothy H. Brown and Barbara C. Ewell (editors), Louisiana women writers: new essays and comprehensive bibliography. Baton Rouge and London: Louisiana State University Press, 2001. pp. 98-118.

[xvi] Mollie Moore Davis, Jaconetta: Her Loves. Boston: 1901. Citado em Patricia Brady, “Mollie Moore Davis”. p. 100.

[xvii] Mollie Moore Davis, “Minding the Gap”, in Selected Poems. New Orleans: The Green Shutter Book Shop, 1927. pp. 70-73. Publicado pela primeira vez em 1862. No original se lê [tradução nossa]:

But hark! A long and mellow cadence wakes
The echoes from their rocks! How clear and high
Among the rounded hill its gladness breaks,
And floats, like incense, towards the vaulted sky!
The open places of the heart – the gaps
Made by restless hands of Doubt and Care –
Could we but keep, like holy sentinels,
Innocence and Faith forever guarding there,
Ah, how much of woe and shame would flee
Affrighted back from their blest purity!
The heart’s proud fields – its harvest full and fair!
Innocence and Love, could we but keep them there,
Minding the gaps!

[xviii] Grace King, “Introduction”, in Mollie E. Moore Davis, Selected Poems. p. 16. No original se lê [tradução nossa]:

She had made “her need in the heart of others”; and fulfilled that appointed her of God.

[xix] Édison Carneiro, citado em Pierre Verger, Notas Sobre o Culto aos Orixás e Voduns. p. 296, apresenta os sete nomes de Iemanjá na seguinte ordem:

1.      Yeyemowo;

2.      Yamase (a mãe de Xangô);

3.      Iyewa;

4.      Olosa;

5.      Ogunte (hermafrodita, casada com Ogun Alagbede);

6.      Saba (manca, está sempre fiando algodão; seu kele —colar— é de fio);

7.      Sesu.

[xx] Jean Chevalier & Alain Gheerbrant, “Sete”, Dicionário de símbolos. pp. 826-831.

[xxi] Jean Chevalier & Alain Gheerbrant, “Sete”, Dicionário de símbolos. pp. 826-831.

[xxii] Mollie Moore Davis, “Faithful unto death”, in Selected Poems. pp. 56-60. No original se lê [tradução nossa]:

Yes! I’d like to meet my mother;
But the prayer I used to know, that prayer
I somehow have forgot – what must I say?
That sins may be forgiven, and earthly care
Grow dimmer as I pass the gloomy way
That leads to Heaven?
To Heaven! (…)
No battles there!
No need of sabre or of trusty gun!

[xxiii] Patricia Brady, “Mollie Moore Davis”. p. 101.

[xxiv] Palavras de M.E.M. Davis em uma carta a um amigo, citadas em Patricia Brady, “Mollie Moore Davis”. pp. 117-118. O poema “The Lady of Shallot” foi escrito por Alfred, Lord Tennyson, em 1843. Nele, a Senhora de Shallot está submetida a um feitiço no qual ela não pode olhar o mundo através dos seus próprios olhos, e sim, refletido por um espelho. Quando finalmente ela olha Sir Lancelot, o objeto do seu amor, o espelho se quebra de lado a lado e a penalidade é a sua morte. Este poema inspirou muitas obras de arte da segunda metade do século XIX, incluindo pinturas e diversas criações literárias. O verso mencionado por Mollie E. Moore é o seguinte:

Lying, robed in snowy white
That loosely flew to left and right
The leaves upon her falling light
Thro' the noises of the night
She floated down to Camelot:
And as the boat-head wound along
The willowy hills and fields among,
They heard her singing her last song,
The Lady of Shalott.

[xxv] Letters of M.E.M. Davis, p. 23. Citado em Patricia Brady, “Mollie Moore Davis”. p. 118. No original se lê [tradução nossa]: the Lady of Shallot floating down the river in her floral barge.

[xxvi] George Ferguson, Signs & Symbols in Christian Art. Oxford: Oxford University Press, 1976. p. 151.

[xxvii] Jean Chevalier & Alain Gheerbrant, “Azul”, Dicionário de símbolos. pp. 107-110.

 

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