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Ave, Maris Stella |
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Nome do Autor: Denise Pini Rosalem da Fonseca |
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denise@anonimoslatinos.org |
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Palavras-chave: 1. Candomblé 2. Iemanjá 3. Mollie Moore Davis |
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Minicurrículo: Profesora Asistente del Departamento de Servicio Social de la Pontifícia Universidade Católica da Rio de Janeiro. Doctora en Historia por la Universidade de São Paulo, concluyó la maestría en Latin American Studies en la University of Houston y la graduación en Arquitectura por la Universidade Federal do Rio de Janeiro. Su investigación, con énfasis en resistencia social e identidades culturales, incluye Bahía, Cuba, Ecuador, Jamaica y Louisiana. Es Directora de web de la asociación de artistas y artesanos latinoamericanos Anonim@s Latin@s y Editora General de la revista virtual LActitud. |
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Resumo:
Um
estudo comparado das representações dos mitos de Iemanjá —a
mais conhecida das deusas nagô— e de Maria, com ênfase nos
conteúdos simbólicos dos nomes, números e cores que as identificam e
dos arquétipos femininos que elas encarnam, através da vida e da obra da
escritora Mollie Moore Davis, da Louisiana do século XIX. |
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Resumen: Un
estudio comparado de las representaciones de los mitos de Iemanjá —la
más conocida de las diosas nagô— y de la Virgen, con base en los
contenidos de los nombres, números y colores que las identifican y de los
arquetipos femeninos que ellas encarnan, a través de la vida y de la obra
de la escritora Mollie Moore Davis, de Louisiana del siglo XIX. |
Sempre
pensei que o nome de Maria estivesse ligado ao mar pois, afinal, além da
semelhança, a palavra Maria começa com as três letras que formam o nome
do oceano. Tola suposição sobre a Sua natureza, enganosamente confirmada
pela tradição, que nos ensina a receber a luz de cada dia louvando à
Virgem com um alegre Salve, Estrela do Mar. Confesso
que me custa algum esforço aceitar que o nome dAquela a quem a estrela de
Belém seguiu, não tenha saído das espumas brancas que beijam a areia,
presenteando-nos jóias brilhantes feitas de nácar prateado; nem do azul
profundo que unifica as águas de cima com as de baixo, pontilhado por seres
luminosos de formas estreladas. Admito também, que me cobra muita energia
tentar decifrar a complexidade do mito de Maria, talvez, tanto quanto me
custe imaginar as maravilhas desconhecidas que habitam a imensidão dos
mares. Mas
se Ela é a porta do céu, então de onde poderia vir Maria, que não fora
da linha do horizonte, onde mar e firmamento se encontram, confundindo-se?
Qual outro meio seria capaz de abrigar estrelas de diferentes essências,
que não fosse o oceano? E quem mais poderia atrair luzes celestiais, que não
fosse Maria? Como
podem ser, o mar e Maria, diferentes? No
entanto, o nome de Maria vem de mirra.[iii] Esta, por sua vez, é uma palavra proveniente de uma
língua semítica, que chegou até nós através do grego e do latim. Mirra
é um substantivo feminino usado como designação comum a duas árvores da
família das burseráceas —as Commiphoras mallis e myrrha. Ambas
são originárias da África, e suas resinas emanam aromas tão especiais,
que delas se utilizaram povos ancestrais para produzir incensos e perfumes.[iv]
Quem
sabe tenha sido esta mais uma razão para que, em 1876, o Cardeal Lavigerie
declarasse Maria a Padroeira da África, quase um retorno à sua origem.
Mas, por capricho da natureza ou da história, Maria se fez também Madrinha
do Brasil quando, negra, miudinha e inquebrantável, ela magicamente imergiu
da matéria líquida —Nossa Senhora Aparecida— confirmando a nossa filiação
mariana, através da águas. Nas
águas brasileiras quem reina é Iemanjá — “a mãe dos
peixes”. Como ocorre no Livro do Gênesis, ela —que é a água—
deu vida aos habitantes dos mares e rios, pela simples ação do Verbo sobre
a sua matéria. E como o princípio feminino do par criador primordial ela
concebeu Orungan —que significa “no alto do céu” — o filho
que foi objeto da sua maior dor. [v]
Se
o mar e a primeira das Mães d’água são inseparáveis, em que dilemas
nos colocaram nossos irmãos da África ao verem em Iemanjá uma
Aparecida, uma Imaculada, uma Conceição, uma Maria! Como
podem ser, o mar e Maria, diferentes? No
Cântico dos cânticos, um apaixonado Salomão visita a
esposa, que o aguarda com as mãos umedecidas pela mirra, que o seu amor
pelo marido delas extrai. Eu
vim para o meu jardim, irmã minha esposa. Quando
o Menino Deus repousa junto ao seio de sua mãe, ele é visitado por reis
iluminados que Lhe presenteiam mirra como uma oferta especial de adoração.
E
entrando na casa, acharam o menino com Maria sua mãe, e prostrando-se, o
adoraram: e abrindo os seus cofres, lhe fizeram suas ofertas de ouro,
incenso, e mirra.[viii] Nas
mãos da esposa, a mirra é perfume que fala de amor e devoção. Aos pés
do Menino a mirra é um incenso valioso, carregado de significados sagrados.
Para toda a humanidade, Maria —a mirra— é a ligação dos seres deste
mundo com a Divindade. Para os povos Nagô, Iemanjá —a mãe
dos peixes— é a senhora dos mares e mãe das suas criaturas, o que
certamente nos inclui pois, nada mais somos, que seres criados a partir das
águas primordiais. Curiosa e insistente coincidência pois, na tradição
cristã, o peixe é o ideograma que simboliza o Cristo —o filho de Maria;
a Divindade que viveu entre nós, por que assim o permitiu a Estrela do
Mar. |
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Como
podem ser, o mar e Maria, diferentes? A
liturgia católica nos fala de um perfume agradável ao Senhor, que seria
uma espécie de emanação sutil proveniente da oferta de sacrifícios
pessoais que fazemos pelo nosso aprimoramento espiritual. Por uma razão
muito semelhante, entre os povos mais antigos o uso ritual de perfumes foi
uma prática largamente empregada para obter o apreço e os favores dos
deuses. Esta prática continuou sendo repetida através dos tempos pelos
ritos hebraicos e posteriormente foi incorporada pelo ritual cristão.[ix] Na
Bahia, a cada 2 de fevereiro, quando os atabaques baterem em uníssono para
louvar Nossa Senhora da Conceição, os barcos já estão carregados de
oferendas aos pés de Iemanjá, onde as peças de tecidos celestes,
os faiscantes espelhos e os adornos prateados estarão ladeando os sabonetes
perfumados e as centenas de frascos de água-de-cheiro que tanto
agradam à senhora dos mares.[x]
Para a grei baiana não há maneira mais eficiente para aproximar-se da
Divindade, que lavar as impurezas mundanas com uma boa dose de esforço
comungado e uma abundância de sagradas e regeneradoras águas perfumadas. Mas
os perfumes também representam os seres celestes, aqueles que coroados de
estrelas se alimentam das mais aromáticas emanações humanas e, através
das nossas ofertas sutis de devoção, promovem a purificação, a virtude e
a regeneração dos seres.[xi]
É por esta causa que Maria é mirra —um perfume— e creio que, pela
mesma razão, Iemanjá se banhe, e faça banhar, em água-de-cheiro.
O
incenso, por sua vez, é um símbolo inequívoco da união da humanidade à
divindade; do finito ao infinito; do mortal ao imortal. Foi com este sentido
que um dos Reis Magos depositou ao lado da manjedoura a sua oferta de mirra
pois, mãe e filho ali presentes —misteriosamente uma só essência—
representam a nossa melhor oportunidade de chegar a entender a natureza do
Ser supremo. A função sacerdotal do Cristo e de sua mãe é que permite a
ambos serem portadores das nossas preces até o céu, através do caminho
conhecido pela fumaça e pelo perfume da mirra e de outros incensos, quando
utilizados como prova de devoção.[xii] Na
cultura Yorubá, originária do interior da África, o litoral é
lugar de destino, ele representa o término, um objetivo a alcançar.[xiii]
A própria saga de Iemanjá confirma esta idéia, pois a sua dor só
cessa quando ela passa a habitar a imensidão dos mares. Assim como nas
culturas ligadas ao movimento celeste, o zênite significa o lugar da
sublimação da condição mundana —o céu— , é possível pensar que,
para os Nagô, a linha do horizonte, onde as águas se encontram,
seja a morada do divino. Talvez seja esta a razão para que os saveiros
carregados de pedidos e oferendas à Iemanjá deixem a praia do Rio
Vermelho, em Salvador, em direção ao horizonte.[xiv] Se
na tradição que concebeu Maria os significados do seu nome representam uma
sublimação da condição humana, um meio para nos aproximarmos de Deus,
uma transferência para o plano divino, quando traduzido para o imaginário Yorubá,
ela não poderia ter outro nome que não fosse um sinônimo de oceano.
Nossa Mãe Divina —quando negra— é o mar e conduz ao Pai as nossas súplicas,
através das voláteis emanações do Seu corpo, perfumadas de maresia. Mary
era um dos nomes mais comuns das meninas nascidas nas famílias cristãs ao
Sul dos Estados Unidos, em meados do século XIX. Nada mais natural que
louvar à Virgem através das filhas mulheres, em um ambiente repassado
pelas dificuldades e pelos perigos de uma vida vivida na fronteira. Perto,
muito perto, andavam os negros trazidos das ilhas caribenhas, com seus
batuques, suas cantorias, suas falas ininteligíveis, seus rituais de águas,
escandalosamente secretos e noturnos, a ameaçar a alma dos crentes e
temerosos filhos de Maria. Como não tentar agradar à Mãe Divina para mantê-la
junto ao seio da família quando, além disso, a poucas milhas de distancia,
ainda havia um universo povoado por outros seres a temer: os índios bravos
e selvagens. Quando
o pai de Mary Evelina Moore [xv],
um médico de pouco sucesso no Alabama, em 1855, carregou mobília, mulher e
filhos em uma carreta e rumou para o Oeste, em busca de melhores
oportunidades, certamente ele desejou contar com a proteção da Santa Mãe
de Deus e agradeceu a sua inspiração, por um dia haver chamado sua segunda
filha de Maria. Mas
como as coisas são o que têm que ser, pai e mãe também haviam escolhido
um segundo nome para aquela menina, uma latinizada variação do nome de
Eva, negação do ideal virginal. Imersa
nesta ambigüidade, a menina cresceu aparentemente em desconforto com a opção
dos pais. Tratada pelos familiares apenas por Mary durante toda a infância
e juventude, assim que pode, ela se livrou deste nome, mantendo apenas o
Evelina, anglicizado como Evelyn. Contudo, penso que esta não tenha sido
uma atitude fácil, pois creio que para nenhum de nós seja muito simples
assumir uma nova identidade perante o meio em que vivemos. Para
resolver seu dilema, a escritora justificou-se utilizando a sua arte, e
produziu um livro no qual a narradora —seu assumido alterego— se livra
definitivamente do indesejado nome de Mary.[xvi]
Até aí, tudo nos levaria a crer que a jovem artista optara por uma vida à
margem do ideal mariano, uma opção feminina perigosamente ligada ao
pecado, ao desejo, ao desfrute das paixões. |
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Mas
aí vêm os seus primeiros versos e eles se apresentam encharcados por uma fé
que transcende as respostas fáceis e as interpretações corriqueiras.
Poesia de menina iluminada, eles falam de um amor supra-humano e militam
numa perspectiva de igualdade muito mais profunda e santa que a de uma
religiosidade de missais. Mas,
ouça! Um ritmo longo e jovial provoca No
vão das montanhas o seu próprio eco! Tão claro, tão denso, Entre
roliças colinas, sua alegria, ele desloca, E
flutua, como incenso, rumo ao firmamento... Espaços
abertos do coração – vãos cavados
por incansáveis mãos de Dúvida e Aflição – Pudéssemos
manter ali eternamente, Inocência e Fé, qual
sagradas sentinelas, em perfeita comunhão. Ah!
Quanta dor, tanta desonra, não fugiria assustada Ao
enfrentar-se com sua pureza abençoada! Os
orgulhosos campos do coração – sua mais farta e bela produção! Pudéssemos
manter ali eternamente, Inocência e Amor, Contemplando
os vãos![xvii] Embora
suprimisse o nome de Mary, a jovem escritora não passou a chamar-se Evelyn,
como seria de se esperar, pois, escolheu para si um novo nome: o de Mollie.
Ora, Mollie era também um dos nomes mais freqüentes entre as escravas
negras do Sul americano em meados do século XIX. Quase invariavelmente as
populações escravas das plantations do Sul teriam pelo menos uma
Mollie, quando estas não fossem várias, e muitas vezes, todas elas seriam
membros de duas ou três gerações de mulheres da mesma família vivendo em
cativeiro. O
nome Maria, como sabemos, é usado nos conventos indiscriminadamente por
todas as religiosas. Ao rebatizar-se Maria, após o renascimento iniciático,
a religiosa renuncia à sua identidade de origem, submetendo-a a da sua
irmandade. Ser Maria é também, portanto, sinônimo de ser irmã na fé. Por
esta mesma razão, quando agraciados com o privilégio do Batismo, os negros
do Sul dos Estados Unidos renunciavam à sua identidade de pagãos e tinham
a oportunidade de se re-nomear com um nome cristão. E não foram poucos os
Josés e as Marias. Mas
Mollie, nascida Mary, fez o caminho exatamente contrário para afirmar, às
avessas, o conteúdo maior do seu nome de batismo: a fraternidade na fé, a
irmandade na vida, uma maternidade generosa e renunciante na sua obra. Ao
nomear-se Mollie, a escritora abdicava das soluções fáceis e se declarava
irmã de todos aqueles que, como ela, estavam empobrecidos, maltratados pela
guerra e pelas doenças e viviam desterrados pelos fluxos da vida, o que
certamente incluía aos homens e mulheres negras ao seu redor. Tenho
sérias dúvidas sobre a inocência de Mollie no momento da escolha do seu
novo nome. Talvez por esta razão, não me surpreenda constatar, que poucos
autores de todos os tempos, tenham sido capazes de tratar o legado Nagô
da Louisiana, com tanta empatia como o fez Mollie E. Moore. Quase uma Iemanjá. Por
outro lado, e voltando ao dilema do começo, poucos intelectuais femininos
do Sul foram tão respeitados e apreciados pelos homens e mulheres do seu
sofrido tempo, como o foi a receptiva, generosa e digna escritora Mrs. M. E.
M. Davis. Toda uma Maria. Ela
semeou o seu “dever no coração de outros”, Na
tradição yorubá, quando um orixá assume a tutela das
nossas vidas, não há como se esquivar de viver nossas missões e os seus
preços. Da mesma maneira, aquilo que algumas vezes chamamos de destino,
outras vezes de karma ou até mesmo de oportunidade, tem a ver com a
nossa filiação espiritual, um legado que recebemos no momento em que se
concebe a nossa identidade no mundo. Literalmente, o momento em que somos
nomeados. Mas
para fazer o mito de Maria ainda mais complexo, Iemanjá —a versão
negra da Mãe Divina— tem sete nomes,[xix] sete variações de uma mesma experiência humana,
sete chances de auto-superação, sete caminhos que levam a Divindade. Ser
filha de Iemanjá pode significar viver na perspectiva de um destes
personagens da deusa, bem como pode implicar alternar, em distintos períodos
da vida, experiências ligadas às várias faces da fada madrinha. Quem sabe
por esta razão, para algumas pessoas seja possível até mesmo mudar de
nome; viver uma nova identidade; reinventar-se periodicamente, sem jamais
deixar de viverem imersas na suas próprias essências. Afinal, como já
vimos, Maria quer dizer perfume, que em última instância significa essência. O
número sete tem uma força simbólica sem precedente. Sete são os dias da
semana, as cores do arco-íris, os sentidos esotéricos do Alcorão, a soma
do ying com o yang, os chacras, os filhos e as filhas
de Níobe, as artes liberais, os pecados capitais, as portas do Paraíso que
se abrirão diante da mãe de sete filhas. O setenário no Livro do
Apocalipse é a chave para o seu entendimento, pois, sete serão as
igrejas, as estrelas, os Espíritos de Deus, os selos, as trombetas, os trovões,
as cabeças, as calamidades, as taças, os reis, os cavaleiros...[xx]
O
sete é o número cósmico e sagrado que representa o céu, a totalidade do
espaço e do tempo, um ciclo de vida concluído, o universo em movimento, a
totalidade humana, o ser humano perfeito, o pacto entre Deus e a humanidade.[xxi]
O sete é Maria, subindo aos céus coroada de estrelas, e sete são as Iemanjás,
usando como diadema um arco–íris na linha do horizonte. Ah!
Eu queria a minha mãe rever; Mas
a prece que eu sabia, aquela oração, Eu
quase nem me lembro – como seria? Que
nos perdoem as faltas, as mazelas do mundo, Que
tudo isso passe, quando a trilha de luz eu cruzar, para
ao Paraíso chegar? No
Paraíso! (...) Lá
não se travam batalhas! Não
se precisa de espadas ou armas como garantia![xxii]
Mollie
tinhas todas as razões para ser um pouco cética em relação à felicidade
mundana. Aos 23 anos ela perdeu a mãe, vítima de tuberculose, e pelos próximos
sete anos da sua vida, ela passou a ser a mãe dos irmãos, sete dos quais
eram mais jovens que ela.[xxiii]
No súbito e precoce papel de matriarca de uma vasta prole, ela não apenas
soube manter a sua essência de escritora, como também tirar deste trabalho
os recursos valiosos com os quais ajudou a seu pai no sustento da família. Sua
vida foi repassada por sucessivos re-começos e ela foi uma artista a
inventar para si novos e fascinantes personagens. A cada situação que se
apresentava ela se superou, seduzindo a todos com sua essência maternal,
receptiva, acolhedora e confortante. Primeiro ela foi uma jovem poetisa de
origem modesta, cujo talento e brilho pessoal a resgatou da pobreza para o
abrigo fino e letrado do lar dos Cushings em Houston. De lá ela regressou
para ser mãe dos irmãos. Mais tarde ela se casou para tornar-se a Sra.
Davis, vivendo em um feliz sonho de amor que lhe negou a maternidade, com a
morte de seu único bebê. Corajosa, ela inventou outra maneira de ser mãe,
e adotou uma sobrinha, a quem criou como filha. Jamais
se abateu, sobreviveu aos duros anos da Guerra Civil como esposa e escritora
no Texas. Depois, mudou-se para Nova Orleans e transformou-se na maior dama
cultural da cidade. Sua casa modesta, porém elegante, na Royal Street
foi um templo de arte, de convívio criativo, de amizades construídas sem
barreiras de nenhuma espécie. Mas a adversidade sempre lhe rondou as
portas. Ano após ano ela cumpriu um ritual de ciclos regulares de regresso
ao Texas, para resguardar sua delicada saúde da estação úmida da
Louisiana. E depois de tantas idas e vindas, ela sucumbiu ao câncer, imersa
em dor, sem jamais perder a poesia: Se
não fora covardia... eu te suplicaria que reze pela minha morte[xxiv] E
Maria a acolheu ao amanhecer do primeiro dia de 1909, provavelmente ao som
de um Ave, Maris Stella. Envolta em um manto de cetim branco, coberta
por imaculados lírios e rosas brancas, ela parecia A
Senhora de Shalott, flutuando rio abaixo em seu saveiro florido[xxv]
Como
ocorreu com Iemanjá, ao morrer, Mollie foi imaginada pelos que a
amavam sendo levada pela correnteza do rio para a profundeza dos mares, toda
vestida de branco. Lá o azul do manto de Maria se confunde com a transparência
das águas e o cristalino da abóbada celeste, pois no azul residem a pureza
e a imaterialidade. Se para os homens durante muito tempo o azul significou
a nobreza mundana, a Santa Virgem, com sua nobreza divina, transformou o
azul em amor eterno, em verdade, no Paraíso.[xxvi]
Juntos,
azul e branco, as cores de Maria e de Iemanjá, significam o desapego
aos valores deste mundo, o encaminhamento da alma liberada em direção à
Divindade, a busca do tesouro que virá ao encontro do branco virginal,
quando ele cruzar a trilha de luz em seu caminho rumo ao azul celeste: o céu
ou a profundeza do oceano.[xxvii]
O Paraíso é apenas uma questão de geografia divina! E
o falso dilema se resolveria facilmente, como uma simples questão semântica,
pudesse Odo Iya traduzir Ave, Maris Stella. |
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NOTAS [i]
Ave, Maris Stella, (Salve, Estrela do Mar). Orações à Virgem
Maria em: “Patrons Saints Index: Mary, Blessed Virgen”, Catholic
Forum. www.catholic-forum.com.
[ii]
Oração a Santa Maria que desata os nós. Orações em: Sociedade
das ciências antigas. www.sca.org.br [iii]
“Patrons Saints Index: Mary, Blessed Virgen”, Catholic Forum.
[iv]
Aurélio Buarque de Hollanda, Novo Dicionário da Língua Portuguesa.
Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1975. p. 929. [v]
Pierre Verger, Notas Sobre o Culto aos Orixás e Voduns.
São Paulo: EDUSP, 2000. p.
295. [vi]
“O Cântico dos Cânticos 5, 1”, A Bíblia Sagrada. Edição
Ecumênica. Rio de Janeiro: BARSA, 1977. p. 520. [vii]
“O Cântico dos Cânticos 5, 5”, A Bíblia Sagrada. p. 520. [viii]
“Evangelho de São Mateus 2, 11”, A Bíblia Sagrada. p. 2. [ix]
Jean Chevalier & Alain Gheerbrant, “Perfume”, Dicionário de
símbolos. Mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números.
Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 2000. Tradução de Vera Costa e
Silva... [et al.], 15a. edição. Primeira edição 1982. pp. pp.
709-710. [x]
Pierre Verger, Notas Sobre o Culto aos Orixás e Voduns. p. 297. [xi]
Jean Chevalier & Alain Gheerbrant, “Perfume”, Dicionário de
símbolos. p. 709. [xii]
Jean Chevalier & Alain Gheerbrant, “Incenso”, Dicionário de
símbolos. p. 503-505. [xiii]
Pierre Verger, Notas Sobre o Culto aos Orixás e Voduns. p. 296. [xiv]
Pierre Verger, Notas Sobre o Culto aos Orixás e Voduns. p. 297. [xv]
Os dados biográficos aqui reproduzidos foram extraídos de: Patrícia
Brady, “Mollie Moore Davis. A
Literary Life”, in Dorothy H. Brown and Barbara C. Ewell (editors), Louisiana
women writers: new essays and comprehensive bibliography. Baton
Rouge and London: Louisiana State University Press, 2001. pp. 98-118. [xvi]
Mollie Moore Davis, Jaconetta: Her Loves. Boston: 1901.
Citado em Patricia Brady, “Mollie Moore Davis”. p. 100. [xvii]
Mollie
Moore Davis, “Minding the Gap”, in Selected Poems. New
Orleans: The Green Shutter Book Shop, 1927. pp. 70-73. Publicado
pela primeira vez em 1862. No original se lê [tradução nossa]: But
hark! A long and mellow cadence wakes [xviii]
Grace King, “Introduction”, in Mollie E. Moore Davis, Selected
Poems. p. 16. No original se lê [tradução nossa]: She
had made “her need in the heart of others”; and fulfilled that
appointed her of God. [xix]
Édison Carneiro, citado em Pierre Verger, Notas Sobre o Culto aos
Orixás e Voduns. p. 296, apresenta os sete nomes de Iemanjá
na seguinte ordem: 1.
Yeyemowo; 2.
Yamase (a mãe de Xangô); 3.
Iyewa; 4.
Olosa; 5.
Ogunte (hermafrodita, casada com Ogun Alagbede); 6.
Saba (manca, está sempre fiando algodão; seu kele —colar—
é de fio); 7.
Sesu. [xx]
Jean Chevalier & Alain Gheerbrant, “Sete”, Dicionário de símbolos.
pp. 826-831. [xxi]
Jean Chevalier & Alain Gheerbrant, “Sete”, Dicionário de símbolos.
pp. 826-831. [xxii]
Mollie
Moore Davis, “Faithful unto death”, in Selected Poems. pp.
56-60. No original se lê
[tradução nossa]: Yes!
I’d like to meet my mother; [xxiii]
Patricia Brady, “Mollie Moore Davis”. p. 101. [xxiv]
Palavras de M.E.M. Davis em uma carta a um amigo, citadas em Patricia
Brady, “Mollie Moore Davis”. pp. 117-118. O
poema “The Lady of Shallot” foi escrito por Alfred,
Lord Tennyson, em 1843. Nele,
a Senhora de Shallot está submetida a um feitiço no qual ela não pode
olhar o mundo através dos seus próprios olhos, e sim, refletido por um
espelho. Quando finalmente ela olha Sir Lancelot, o objeto do seu amor,
o espelho se quebra de lado a lado e a penalidade é a sua morte. Este
poema inspirou muitas obras de arte da segunda metade do século XIX,
incluindo pinturas e diversas criações literárias. O
verso mencionado por Mollie E. Moore é o seguinte: Lying,
robed in snowy white [xxv]
Letters of M.E.M. Davis,
p. 23. Citado em Patricia Brady, “Mollie Moore Davis”.
p. 118. No original
se lê [tradução nossa]: the Lady of Shallot floating down the
river in her floral barge. [xxvi]
George Ferguson, Signs & Symbols in Christian Art. Oxford:
Oxford University Press, 1976. p. 151. [xxvii] Jean Chevalier & Alain Gheerbrant, “Azul”, Dicionário de símbolos. pp. 107-110.
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