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 1
 
Das
rias ao mar oceano,
  
tanto
medo e tanto engano.
 
Os
sonhos que se sonharam,
  
quantos
deles naufragaram?
 
Mil
e uma travessias
  
são
tragadas pelos dias.
  
As
noites roem lembranças
  
no
porão das esperanças.
  
 
Ventre
líquido da Terra,
  
o
mar digere trabalhos
  
e
esfarrapa os agasalhos
  
de
quem no sonho se encerra.
 
No
cais ficaram os nomes,
  
os rostos, as mãos, os olhos.
  
Depois
recifes e escolhos
  
doeram
mais do que as fomes
  
dos
dias mortos de inverno,
  
sem
capote sobre o terno
  
que
serviu quatro estações,
  
do
sol às inundações. 
  
  
 
2
 
Interroga-se
o horizonte
  
e
ele nada diz. A ponte
  
entre
o olhar e a linha azul
  
esvai-se
de norte a sul.
 
Como
será do outro lado?
  
Qual
a cor do inesperado?
  
Que
desenho tem o amor
  
quando
se passa o equador?
  
E
as flores, que formas têm,
  
se
lá há flores também?
  
 
As
árvores, lá, têm frutos
  
que
adoçam dores e lutos.
  
Das
terras brotam sozinhos
  
grãos
prontos para os moinhos.
  
 
O
mundo nasce de novo,
  
como
a ave surge do ovo
  
e
o céu, lavado em azul,
  
ganha
outra forma no sul.
 
 
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3
  
 
Água
e água, dia e noite.
  
O
mar é o contínuo açoite
  
que
o casco da nau arranha,
  
quando
estranha fúria o assanha,
  
arrancada
ao longo abismo
  
como
um véu de paroxismo,
  
para estrelar-se em espuma
  
sob
o sol ou sob a bruma.
  
 
As
leiras já se perderam
  
no
gesto com que as venderam
  
mãos
ávidas de partida.
  
Na
ilusória despedida,
  
a
grávida mente dança,
  
gestando
sua esperança
  
no
estômago da pobreza,
  
sempre
solitário à mesa
  
em
que outros comem mais gordo,
  
como
em desigual acordo.
  
 
Lança-se
o dardo nos ares
  
para
atravessar os mares
  
e
colher na árvore os pomos
  
feitos
de dourados gomos
  
num
paraíso de engano
  
enquanto
se cruza o oceano.
 
 
4
  
 
São
tantas noites em claro
  
cultivando
o solo raro
  
do
conto que lhes contaram.
  
Não
sabem que se roubaram,
  
roubando-se
a vida calma
  
em
que punham corpo e alma
  
no
existir limpo e conciso
  
em
que o tempo era preciso,
  
não
medido em fantasias
  
e
sim no contar dos dias.
  
 
Mas,
longo, o salto no escuro
  
constrói
em si próprio o muro
  
feito
de mito e miséria,
  
mostrado
na imagem séria
  
de
tudo quanto entedia
  
e
não muda a cada dia.
 
 
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5
  
 
Para
trás ficam as vinhas.
  
À
frente, as aves marinhas
  
que
sobrevoam os mastros
  
parecem
falar dos astros,
  
silenciosos
nos ares
  
como
os santos nos altares.
  
 
Nunca
mais colher os frutos
  
das videiras. Dias brutos
  
anunciam-se
no fim
  
do
mentiroso festim,
  
simulacro
da viagem
  
que
se perde na paisagem.
  
 
Joga-se
a vida num lance
  
de
que não se sabe o alcance.
 
 
Das
rias ao mar oceano,
  
quanto
erro e quanto dano,
  
quantos
destinos cortados
  
por
fios de aços manchados
  
pelo
sangue dos aflitos
  
apunhalados
nos ritos
  
de
macabras meigas nuas
  
no
dia-a-dia das ruas
  
ou
na poeira dos balcões
  
sob
a mira dos ladrões,
  
longe
de eiras e de herdades,
  
entre
as fauces das cidades.
  
 
Quanta
voz calou, surpresa,
  
nos
cortiços da pobreza,
  
depois
de baixar à terra
  
e
na cidade ou na serra
  
comer
um pão mais amargo
  
que
o do território largo
  
de
sua fome nos montes,
  
antes
de cruzar as pontes
  
do
medo para a aventura,
  
lavada
em audácia pura.
 
 
7
 
 
Das
rias ao mar oceano,
  
segue
o barco a todo pano,
  
para
revelar segredos
  
trancados
em tantos medos
  
do
grande desconhecido,
  
talvez
num baú perdido.
  
 
Mas,
do outro lado, as respostas
  
serão
como cartas postas
  
no
correio para o mundo,
  
com
o acento iracundo
  
de
quem foi logrado e tenta
  
desforrar-se
e, amargo, senta
  
nos
molhes dos portos mudos
  
para
chorar os agudos
  
golpes
com que o retalharam.
  
Depois riram? Gargalharam.
 
 
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Das
rias ao mar oceano,
  
tudo
é jogo, absurdo e insano.
  
 
A
poucos o jogo serve
  
enquanto
o sangue lhes ferve
  
nos
prazeres da vitória.
  
Para outros, outra é a história,
  
contada
em dias de fome
  
em
que o solitário come
  
a
unha encardida no lixo
  
que
investiga, como um bicho,
  
usando
a sórdida pata
  
como
um talher de ouro ou prata.
 
 
9
 
Das
rias ao mar profundo,
  
perde-se
ou ganha-se o mundo.
 
Há
o que sobe, rei do engodo
  
com
que engana e mente a todo
  
que
lhe atravessa o caminho.
  
Vestido
de lã ou linho,
  
sempre
cheira ao muito vinho
  
servido
em sua mansão,
  
e
até se torna barão.
  
 
Comendas,
medalhas, o ouro
  
que
tem compra-lhe um tesouro
  
para
mostrar em vitrinas,
  
tal
como exibe as latrinas
  
de
mármore aos que o cortejam
  
e
com ele mercadejam
  
a
sorte de quem perdeu
  
até
mesmo o próprio eu.
 
 
Já
outros, com as mãos frias,
  
enchem
as enfermarias
  
dos
hospitais de indigentes,
  
cuspindo
os pulmões doentes
  
nas
bacias de ágata, alvas
  
como
aquelas almas salvas
  
pelas
preces das beatas
  
em
igrejinhas pacatas.
 
 
Das
rias ao mar, ó mundo,
  
em
que história crer, no fundo?
 
10
  
 
Das
rias ao mar, aldeias
  
desfazem-se
como as teias.
  
 
As
casas de pedra falam
  
no
silêncio em que se calam
  
e
as ruas da aldeia, mortas,
  
parecem
estar mais tortas
  
sob
a fina chuva miúda
  
que
em cada parede gruda.
  
 
Foram-se
os homens. As velhas
  
já
não consertam as telhas
  
nem
cultivam mais as berças,
  
em
suas camas imersas,
  
sonhando
as bodas antigas,
  
em
que, belas raparigas,
  
sorriam
com o noivo ao lado.
  
Assim
corrói o passado.
 
 
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11
 
Das
rias ao mar, um dia
  
completa-se
a travessia.
  
 
Do
outro lado, é verde e quente,
  
e
o suor está presente
  
em
cada esforço, no apego
  
com
que se agarra ao emprego
  
o
que emigrou. É preciso
  
comer
pouco e ter o siso
  
de
poupar o cobre e enviá-lo
  
a
quem ficou. Cada calo 
exalta
o esforço do pobre,
  
mas,
na aldeia, toca o dobre
  
em
que se anuncia a morte
  
da
mãe do que busca a sorte.
  
 
Faz-se
a lágrima um cristal,
  
como
o claro pedestal
  
de
onde se eleva a figura
  
tersa,
forte, honesta, pura
  
de
quem cevava alimárias,
  
enquanto
o filho, entre párias,
  
tenta
levantar do asfalto
  
com
os olhos postos no alto
  
do
outeiro de sua aldeia,
  
de
onde imaginou um dia
  
partir
para a travessia.
  
 
Partir
sempre foi preciso,
  
com
lágrimas ou com riso.
 
 
12
  
 
Das
rias ao mar, a guerra
  
leva
o rugido da terra.
  
 
Entre
insultos, fuzilados,
  
caem
mortos os cansados,
  
os
que perderam na luta,
  
entregues
à sanha bruta
  
de
antigas fúrias sangrentas
  
como
as de aves agourentas
  
que
se nutrem dos despojos
  
sem
escrúpulos ou nojos.
  
 
As
cartas seguem rasgadas
  
e
as frases são censuradas.
  
Não
pode o filho saber
  
se
a mãe tem o que comer.
  
São
penas a suportar
  
no
outro lado do mar.
  
 
Quem
se faz ao mar não sabe
  
de
quem fica o que lhe cabe.
  
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13
 
 
Das
rias ao mar, a lenda
  
é
o abrigo armado em tenda.
  
 
Os
anos rolam.  
 Não passa 
a
dor cínica e devassa
  
que
adere às roupas e aos muros
  
e
sempre dá tons escuros
  
às
conversas em dialeto
  
sob
um estrangeiro teto
  
em
climas tão diferentes
  
daqueles
em que os parentes
  
reunidos
junto ao fogo
  
não
participam do jogo
  
da
aventura sobre as águas
  
em
que se afogam as mágoas.
  
 
Muitos
voltam. Outros não,
  
entregues
a um outro chão
  
que
não o do berço antigo. 
Bom
amigo ou inimigo,
  
o
novo solo os aguarda
  
com
a vestimenta parda
  
da
terra que os cobrirá.
  
Quem sobreviver, verá.
  
 
E
assim os dias são malhas
  
tecidas
para as mortalhas.
 
 
14
 
 
Das
rias ao mar oceano,
  
haverá
na vida um plano?
  
 
Já
não se parte, que o pão
  
chega
para a divisão.
  
Migram
as aves. Galaica,
  
a vida, já não arcaica,
  
gera
frutos que se comem
  
e são para
todo homem 
e
toda mulher. O porto
  
já
não se olha como ao torto
  
e
torvo lugar do espanto
  
com
que se amordaça o canto,
  
criando
órfãos e viúvas,
  
nem
as sonolentas chuvas
  
trazem
saudade ou morriña
  
a
cada folha ou gavinha
  
dos vinhedos, ou aos montes,
  
ou
aos ribeiros e às fontes
  
entregues
a uma cantiga
  
sempre
nova e sempre antiga.
  
 
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