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O espanhol nos umbrais do terceiro milênio: aspectos literários

Nome do Autor: Magnólia Brasil Barbosa do Nascimento

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Palavras-chave: Ficção – história - diálogo

Minicurrículo: Doutora em Literaturas Espanhola e Hispano-Americana, Professora Adjunta do Setor de Letras Hispânicas, Instituto de Letras, UFF, Membro do Conselho Editorial da Revista Hispanista, Linha de pesquisa: Literatura e vida cultural.

Resumo: Na rica e pujante Espanha dos umbrais do terceiro milênio, três escritores em produção de gerações diversas: Miguel Delibes, Manuel Vázquez Montalbán e Arturo Pérez-Reverte, ao se voltarem para o passado, estabelecem um diálogo com o presente e nos permitem ler sua preocupação com o que o próximo século reserva para o ser humano em geral e o ser espanhol em particular.

Resumen:  En la rica y pujante España de las visperas del tercer milenio, tres escritores en producción, de generaciones distintas: Miguel Delibes, Manuel Vázquez Montalbán y Arturo Pérez-Reverte, cuando se vuelven para el pasado establecen un diálogo con el presente y nos permiten leer su preocupación con lo que el próximo siglo le reserva al ser humano en general y al ser español en particular.

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Para Miguel Delibes em seu 80° aniversário de nascimento


Minhas asas estão prontas para o vôo. 
Se eu pudesse, retrocederia
Pois eu seria menos feliz se permanecesse imerso no tempo vivo.
Gerhard Scholem

 

A mi juicio, el primer paso para cambiar la actual tendencia del desarrollo [...] radica en ensanchar la conciencia moral universal. [...] Esta conciencia, que encarno preferentemente en un amplio sector de la juventud que ha heredado un mundo sucio en no pocos aspectos, justifica mi esperanza.

                                                     Miguel Delibes

O fim do Século XX encontra a língua espanhola numa situação de tal esplendor que faz pensar em tempos dos Reis Católicos, época em que navegantes e todo tipo de  conquistadores, fizeram com que ressoasse esse idioma, já então senhor de uma gramática, pelos quatro cantos da Terra. A comparação prende-se apenas, é bom que se diga, ao fato de que, hoje, cerca de 400 milhões de pessoas falam espanhol no mundo. A pujança atual do espanhol deve-se, entretanto, a razões bem diferentes às daquela época em que se iniciava o período de hegemonia da Espanha. Penso que uma delas é a diáspora provocada pela pobreza de muitos hispano-amercianos que se lançam em busca de melhores condições de trabalho e de vida, em precários barcos, na guagua aérea, nas caminhadas por trilhas noturnas, nas braçadas em busca da outra margem, rumo a  outros territórios e a novas esperanças, os dólares da sobrevivência que os esperam nos Estados Unidos, no Canadá, na Austrália. É bem diversa a natureza dessa expansão. Seja como for, dilata-se a fronteira em língua espanhola e hoje em dia já não é o Rio Grande, na América do Norte, o divisor entre o território de língua inglesa e o de língua espanhola,  por exemplo, já que são cerca de 27 milhões os mexicanos que estão ao norte do Rio Grande. Não quero deter-me nessa questão específica na minha fala de hoje, mas sim, buscar inserir-me no tema que orienta a organização deste evento de cuja participação muito me honro. Cabe-me comentar algumas questões relacionadas à literatura espanhola neste final de século que é também a véspera de um novo milênio, pois a literatura é, indiscutivelmente, uma extraordinária representação da pujança de um idioma. O que se produziu antes de 1492, na Hispania, dá visto bom a essa minha afirmação Pensando em tudo isso, quero deter-me em algumas questões relativas à literatura espanhola da década de 90, numa tentativa de dar a conhecer parte de minhas reflexões sobre alguma obras produzidas recentemente na Espanha, seguindo uma via escolhida como tema de uma pesquisa mais ampla: “A literatura na virada do século: fim das utopias.

O ensaísta espanhol José Angel Valente, no artigo: “El fin del milenio y el ángel de la historia” assinalou como característica deste fim de século e de milênio (negativa, segundo afirma) a acusada tendência “a la fusión de todas las perspectivas en una sola”, a utopia do neoliberalismo que pretende impor sua própria concepção de mundo a todo o planeta, consolidando a referida utopia como pensamento único: o da globalização a instalar a lógica da competição em detrimento do que ele chama de “bem comum”, ou seja, uma utopia coletiva. E completa seu raciocínio apontando para o fato de que tudo isso resulta na explosão das desigualdades, no maciço retorno à pobreza e ao desemprego, fatos que nosso olhar fiel ao  referido “bem comum”, conhece de sobra.

Há muitos anos o escritor espanhol Miguel Delibes denuncia em sua obra as brutais conseqüências de um progresso que põe o cidadão no coração de uma devastadora crise, feita de incertezas e de opacidade. Delibes sublinha vivamente essa denúncia, em 1975,  no discurso de ingresso à Real Academia Española ao afirmar que “el hombre sigue empeñado en bloquear su propia salida a la esperanza” (1993, p. 14). Filtra-se aí uma preocupação solidária, que se impõe como forma de resistência e também como busca de luz em um presente sombrio, um tempo em que, tal como na frase de Tocqueville, o passado deixou de iluminar e o presente caminha entre trevas (2000,  p.38 ).

No Brasil conhecemos muito pouco sobre as questões históricas da Espanha do século XX, país não industrializado nas primeiras décadas que, pela neutralidade na primeira guerra mundial, foi convidado a sentar-se à mesa das negociações, assumindo o importante papel de árbitro internacional do conflito. Na década de 30, nesse país de tantos contrastes nas mais diversas instâncias, eram vários os níveis de um jogo político intenso em que atuavam republicanos, monarquistas, anarquistas, a força dos militares, além do peso do clero no cotidiano do povo espanhol. Importa registrar que nesse caldeirão em que iam fervendo os fatos que resultariam na guerra civil, em 1936, havia uma esquerda que era o sonho de todas as esquerdas com seu projeto de reforma agrária e educacional. A Espanha era vista pelo mundo como um país inovador: ali surgia a utopia de um mundo novo onde todas as pessoas são iguais e têm responsablidade sobre o próprio destino.

A guerra civil espanhola reuniu muitos estrangeiros movidos pelos acontecimentos na Espanha, que não se apresentavam como voluntários na defesa do disputado jogo de nacionalidades. Na raiz de sua motivação, além da luta contra o fascismo que ameaçava engolir a Europa, havia uma razão maior: ao alistarem-se nas Brigadas Internacionais, cidadãos de várias origens integravam-se ao corpo de defesa da utopia que a Espanha vivia então, em uma ação conjunta de ajuda na construção de um mundo novo, numa solidariedade inédita na história da Humanidade, à que foi, tal como declarou a Professora Marcia Motta, em palestra no Instituto de Letras da UFF, em abril de 2000,  a maior utopia do século XX. É possível que seja essa a explicação para que a memória da guerra civil espanhola permaneça viva em todo o mundo, através das mais diversas manifestações artísticas. 

Subir Todos sabemos que a literatura espanhola, em grande parte do século XX, foi marcada a ferro e fogo pelas circunstâncias decorrentes da brutal interrupção desse processo,  com a vitória de Franco e seus aliados sobre os republicanos que não conseguiram manter-se unidos.  Instalavam-se os “tiempos de hambre y de escasez” e, principalmente, a opressão franquista. Os escritores que viveram a guerra civil, de 1936 a 1939, muitos deles da conhecida “generación de los niños de la guerra”, outros já adolescentes durante o conflito, uma década após a subida de Franco ao poder, encontraram uma maneira própria de escrever, dialogando com o silêncio imposto pelo autoritarismo, driblando-o e, mesmo, denunciando-o, numa luta para garantir o direito à palavra, quer dizer, à liberdade. Alguns desses escritores permanecem em produção na década de 90.

Ao lançar um olhar sobre a produção ficcional de escritores espanhóis no fim deste século, meu propósito é o de verificar até que ponto a grande utopia do período pré-franquista e franquista permanece viva, ou que outra utopia se impõe no momento em  que a globalização é a palavra de ordem, e até mesmo se ainda é possível pensar-se na existência de alguma utopia. Para onde aponta e por que razão aponta nessa direção a Literatura Espanhola deste fim de século? Nesse sentido, mais que listar nomes de autores e de obras, detenho-me, em três escritores de gerações diferentes mas atingidas, todas, pelo autoritarismo ditatorial,  egressos do jornalismo e em produção na década de 90. São eles: Miguel Delibes, nascido em 1920, em Valladolid; Manuel Vázquez Montalbán, nascido no ano do fim da guerra civil espanhola, 1939, em Barcelona e, por fim, Arturo Pérez-Reverte, nascido em Cartagena, em 1951. As obras de referência (não as únicas, naturalmente) são o romance de Delibes, El Hereje, publicado em 1998; de Vázquez Montalbán, a Autobiografia do General Franco, publicada em 1992; de 1997 é Limpieza de Sangre, de  Arturo Pérez-Reverte .

Esse corpus justifica-se, principalmente, pelo fato de Delibes e Pérez-Reverte voltarem-se para os séculos XVI e XVII, respectivamente, período em que a opressão exercida pela Inquisição estava no auge, na Espanha;  Vázquez Montalbán, ao tematizar Franco em uma autobiografia forjada, detém-se num período recente da História da Espanha em que os procedimentos inquisitorais eram postos em prática em nome de uma assim chamada “cruzada” nacional. Ao relacionar esses três narradores a partir, basicamente das obras elencadas, penso já estar adiantando uma observação imediata no que diz respeito a uma volta ao passado mais próximo ou mais distante, uma forma de repensá-lo e assim, pensar o próprio tempo pois que levaria três escritores espanhóis, de diferentes gerações, a voltarem-se, na última década do século XX para um passado marcado pela opressão e pela intolerância?

Impossível não recordar aqui a tese de Walter Benjamin sobre o quadro  Angelus Novus,  de Klee, que representa um anjo aparentemente prestes a afastar-se de alguma coisa que contempla imóvel, olhos fixos, boca aberta, asas estendidas. Afirma Benjamin: “O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos, e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos de progresso”(1986, p.226)

Isso posto, lanço meu olhar  sobre o silêncio e o autoritarismo no século XVI, através de El Hereje, romance de 1998 já em sua 18a. edição;  ambientado no período em que há o cisma na Igreja Romana do Ocidente, na Valladolid cenário de quase toda a obra de Delibes, estabelece um diálogo entre duas épocas em que a intolerância, as guerras religiosas e outras formas de violência mantém-se no centro da cena. Ao criar um personagem nascido em 1517, mesmo ano em que Lutero fixa suas teses contra as indulgências na porta da Igreja de Wittenberg, o autor discute  uma constante delibesiana: o respeito à liberdade individual, ética que tem, em El Hereje uma frase síntese quando o personagem central, Cipriano Salcedo suplica a Jesus que lhe dê algum sinal sobre o caminho a seguir, alguma luz para as suas inúmera perguntas:  “Pero Nuestro Señor permanecía en silencio y, al mostrarse mudo estaba respetando su libertad”(p. 488)

A narração introduz o ambiente do século XVI, da Espanha de Carlos V e Felipe II, voltada sobre si mesma, de um catolicismo fanático e reprimido, período em  que se dá a volta definitiva na ortodoxia. Entretanto a feroz intransigência, acentuada em tempos de Felipe II, afastou a Espanha da consciência moderna que surgia na Europa de então, que começava a pensar por si própria, sem a tutela da Igreja Católica
Nesse romance de corte histórico, prevalece a ficcionalização no desdobramento de uma fábula que vai expor questões que são do século XVI e permanecem vivas no século XX, como a dos trabalhadores sem terra, a tendência à emigração, os desempregados no longo inverno da Meseta, o trabalho ocasional mal pago, temas  vivos até mesmo na rica Espanha do fim deste século e em tantas outras partes do mundo.  Ao mesmo tempo, a promiscuidade na urbana Valladolid do XVI, torna-a campeã em sífilis, o que traz à cena  os perigos de uma relação carnal, 500 anos antes da aids. A atualidade dos temas conduz-nos à questão da utopia,  pelo curioso deslocamento temporal na obra de um escritor que sempre repensou seu próprio tempo e expôs, clara e coerentemente, a sua própria utopia.   
Subir Delibes faz, a sua maneira, esse balanço de fim de século a que se refere Baudrillard. Aí vão-se enfileirando as questões que estão vivas e se a referência é o século XVI, isso não só não impede que venha à tona o que é a marca do século XX, como também funciona como denúncia e cobrança por todos esses séculos de desinteresse, abandono, indiferença que resultaram na permanência da opressão em seus mais variados modelos. Na contramão das tendências de apagar da memória os acontecimentos negativos, Delibes segue fiel à certeza da necessidade de mantê-los vivos para que não voltem a acontecer, escapando assim à denúncia de Baudrillard de que vemos hoje que tudo o que aconteceu neste século, em termos de progresso, de liberação, de revolução, de violência está a ponto de ser revisado no bom sentido.

Salta ao olhar leitor a isenção do narrador na tarefa de contar, na recuperação de um quadro particular que se universaliza na dimensão humana desenhada e também a minuciosa e exata recriação das complexidades das relações inquisitoriais. Cipriano Salcedo em sua busca, em suas inquietações e em sua ética, é o homem constantemente ameaçado por tentar um caminho próprio e ousar buscar respostas nos princípios de Lutero, o que termina por mergulhá-lo no isolamento, na solidão, no silêncio das masmorras, na morte na fogueira. O narrador, ao fazer crepitar a ação das chamas no corpo miúdo de Cipriano Salcedo, o mesmo fogo da feroz intolerância  que consumira na Itália Giordano Bruno e tantos outros personagens de um longo período inquisitorial, reconduz ao centro da cena fatos que não podem ser esquecidos, que a memória precisa manter vivos para que não se repitam.

Nessa vertigem de terra devastada, El Hereje estabelece um tenso diálogo com alguns dos temas cruciais do século XX. A voz narrativa desenha as cavernas do horror abertas pela Santa Inquisição na Valladolid de Carlos V e Felipe II e estabelece-se um diálogo com tantas outras cavernas de crueldade, de “maldad insolente”,  para repetir a expressão usada no conhecido tango argentino, o genocídio e as infinitas barbaridades que arruinaram o planeta, acentuaram a exclusão social, num século que, para muitos, esgotou o tempo das utopias.  Na seqüência narrativa, ao revisitar essa prática cruel da história da humanidade, os autos de fé, o narrador vai fazendo com que os fatos reconstruam a ação enquanto o quadro particular que propõe se universaliza. Importa resgatar a frase emblemática com que Don Ignacio Salcedo, destacado membro da Corte valhisoletana, católico piedoso, despede-se do sobrinho Cipriano a caminho do julgamento que o levaria a morte na fogueira do auto de fé: “Algún día esas cosas  serán consideradas como un atropello contra la libertad que Cristo nos trajo. Pide por mí, hijo mío.(p.462)

Miguel Delibes, ao valer-se de tons e dissonâncias do século XVI espanhol, compõe com El Hereje um canto à liberdade de consciência, reafirmando,  na coerência  de toda a sua obra, a certeza de que há uma utopia coletiva a defender ainda neste fim de século XX, a que privilegia as individualidades sem perder de vista o bem comum.

Em outra perspectiva situa-se Augusto Pérez-Reverte, escritor de produção intensa, fenômeno de vendas no mundo hispânico, mas olhado com desconfiança pela academia.  Repórter de guerra durante 21 anos, deixou esse ofício para dedicar-se à elaboração de uma já vasta obra literária. Seu personagem mais conhecido é Diego Alatriste, el Capitán Alatriste, um soldado veterano das guerras de Flandes, que vive do soldo de espadachim mal pago na Madrid do século XVII. Na reorganização do universo histórico e social em Limpieza de Sangre, através de inúmeras e perigosas aventuras de capa e espada, vamos imergindo nas intrigas não menos perigosas  da Corte, numa Espanha corrupta e decadente. Na obra de Pérez-Reverte,  de corte histórico como El Hereje, de Delibes, articulam-se personagens e fatos ficcionais, como as guerras de Flandes, a Inquisição,  questões políticas, fragmentos de poemas de Quevedo, personagem de expressiva atuação na fábula, Lope de Vega e suas comédias, numa  articulação que vai enredando Diego Alatriste com uma “corte de funcionários venales y curas fanáticos bajo la mirada indiferente del cuarto Austria” (p. 218), além da vasta gama de pessoas que compunham o povo madrilenho de então.   Na apresentação da Espanha do século XVII, percebe-se a relação implícita que se estabelece com a Espanha atual e um certo tom de piedade pelo que dela foi feito: “Pues, desde siempre, ser lúcido y español aparejó gran amargura y poca esperanza”, (p.235). Uma das razões para essa afirmação está embutida no que o narrador comenta sobre um mundo venal, feito de hipocrisia e boas maneiras, em que  “los poderosos, los buitres, carroñeros, los envidiosos, los cobardes y los canallas suelen encubrirse unos a otros. Dios nuestro señor los crió a todos y estos fueron juntándose desde siempre y bien a su manera en nuestra infeliz España” (p.233)  
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É curioso observar a manifesta consciência de um traço muito espanhol, em Limpieza de sangre, algo que marca culturalmente a Espanha ao longo dos tempos: a fidelidade a si própria. Sempre que a Espanha se abre para o novo, aferra-se ainda mais a suas raízes, numa fidelidade ao espírito nacional que se expressa nas mais diversas manifestações culturais  através de “elementos constantes,  ‘de raça’, a denunciar permanência do passado, compromisso com a geografia local”. Essa conclusão, que seria em parte a tese defendida por José Carlos Lisboa (1961, p. 9) depois de volumosa documentação levantada nas mais variadas e fidedignas fontes, está reafirmada em Limpieza de sangre, a propósito do interesse que despertava em todo o corpo social o auto de fé: “Aquella España desdichada, dispuesta siempre a olvidar el mal gobierno, la pérdida de una flota de Indias o una derrota en Europa con el jolgorio de un festejo, un Te Deum o unas buena hogueras, oficiaba una vez más de fiel de sí misma”  (p. 230).

Pérez-Reverte brinca, aparentemente, com a corrupção e a crueldade de uma corte sórdida e revela uma sociedade amorfa pelo que dela fazem os maus governantes, anulando-lhe vontade, ânimo, espírito crítico, mantendo-lhe vivo o temor pela ameaça constante do mega-espetáculo perversamente circense dos autos de fé, uma sociedade de gente essencialmente boa. Comenta o narrador que desde os tempos de El Cid, já o cronista anónimo registra o que a Espanha tem de bom: seu povo, gente que sempre deu o melhor de si própria, inocência, dinheiro, sangue, trabalho mal pago. Recorda os versos do famoso poema épico: “Qué buen vasallo que fuera, si tuviese buen señor”. E adverte que outra teria sido a história do que chama de “nuestra desgraciada España”, se prevalecessem os impulsos do povo frente à aridez das razões do Estado, à venalidade e à incapacidade dos políticos, nobres e monarcas. Com essas críticas e reflexões, o narrador traz a fábula aos tempos atuais e propõe, claramente, um severo balanço sobre o tempo em que vivemos.


Se Miguel Delibes e Pérez-Reverte voltam-se para os séculos XVI e XVII respectivamente, Manuel Vázquez Montalbán detém-se no século XX, quando uma outra inquisição se abateu sobre a Espanha, ao elaborar uma fraudada Autobiografía del General Franco, que permite ao leitor apreender, também, na recriação de sua memória, o narrador/personagem/autor contratado da dita autobiografia, o alter-ego de Franco: Marcial Pombo. O personagem de que se vale Vázquez Montalbán oferece uma inusitada visão plural do Generalísimo Franco e propicia o questionamento do papel dos historiadores em relação à interferência de uma visão histórica que, ao deter-se nas linhas gerais, enfraquece a real dimensão dos fatos.

Desdobram-se, nessa autobiografia, duas metas: a do franquismo e a do anti-franquismo, uma vez que se o fictício Franco expõe suas razões e ideais, o contraponto se levanta a cada momento e, na recondução dos fatos às  dimensões da ótica oposta por Marcial Pombo, o leitor acompanha o longo e complexo desdobramento do processo utópico de fazer da Espanha o país modelo para o mundo, tal como o concebiam Franco e a Falange.

Se no romance de Miguel Delibes se problematiza a questão da crise da Modernidade, a visão fanatizada dos Áustria que fecha a Espanha, colocando-a à margem de uma nova mentalidade, Manuel Vázquez Montalbán, põe a nu como Francisco Franco, séculos depois atrasa por anos a Espanha em relação ao progresso do mundo contemporâneo, mantendo o país fechado sobre si mesmo.

Tal como na crônica “Os gritos de Giordano Bruno”, do português José Saramago, escritor também comprometido  com a questão da liberdade humana, Vázquez Montalbán revela a preocupação de que os dicionários enciclopédicos virtuais, dentro de 50 anos, forçados pela objetividade histórica, achatem o que é fundamental recordar, reduzindo os fatos, a “quatro imagens, quatro gestos, quatro situações e uma voz em off” ( p.621). Nessa direção aponta o original procedimento narrativo dessa obra de 621 páginas que, ao trabalhar com diferentes vozes, entrelaça ficção e história e chega a discutir a realidade da Espanha, agora européia; é o caso por exemplo da recuperação de fatos recentíssimos, referidos “en passant”;  que, embora ficcionalizados, dão conta, de como o jovem espanhol de hoje lida com a questão do movimento operário,  as questões surgidas na raiz da nova realidade advinda da integração da Espanha à Comunidade Européia. O foco de luz  se desloca  da juventude das décadas de 50 e 60 para a do fim de século XX. Cerca de 40 anos mais tarde, oferece-se ao olhar leitor a atividade de recuperação da cultura crítica pelos jovens, a resistência intelectual na busca solidária do direito à liberdade, a luta mantida pelo próprio Marcial Pombo em defesa dos mineiros de Astúrias num contraste com a figuração dos jovens dos anos 90, através dos filhos de Marcial Pombo, uma pobre drogada, com tendências suicidas e um rapaz que nunca deu outro tipo de problemas, a não ser os “ideológicos” (p.21); “[...] advogado técnico do Estado que  atualmente colabora com o governo no plano de desertificação trabalhista das Astúrias, região da Espanha de aguerrida memória social, ao que parece condenada pelas regras do jogo do que outrora se chamou de divisão internacional do trabalho” (p. 21). Diante da lembrança de Marcial Pombo, ao recordar que em 62 fora para a prisão por sua solidariedade aos mineiros das Astúrias, respondeu-lhe o filho que sua solidariedade é “universalista e macro-econômica” (p.21).

Fica a pergunta: ao contar e documentar todos esse fatos que o apresentam como um vencido, um derrotado, não estará Marcial Pombo contribuindo, com seu testemunho e sua memória, para manter vivo o que os futuros verbetes minimizarão, numa forma de resistência, dando uma resposta aos que o crêem derrotado em sua esperança de um homem melhor? São algumas das questões que se explicitam na obra de VázquezMontalbán: Franco, diante da inexorabilidade da morte, permanece consciente do que foi, uma ironia que lhe reserva a “vingança” autobiográfica de Marcial Pombo. O corpo quase putrefato grita seu valor frente à solidão da morte, não o grito de indignação de um homem solidário, como Cipriano Salcedo ou Giordano Bruno, na defesa da liberdade, mas o de um homem que, no século XX, atrasou todo um país, por quase quatro décadas.

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Da obra dos três romancistas, filtra-se uma crítica contundente à qualquer forma de violência e também, um aceno de esperança. Na volta ao passado, os narradores discutem, por refração, o próprio século XX e dialogam com a epígrafe  desta comunicação. Nessa retomada, insere-se a afirmação do escritor argentino Marcus Aguinis de que a melhoria do século XXI não depende de “buena suerte”, mas de homens e mulheres que tenham coragem para reverter tudo isso, ao mesmo tempo em que aponta na direção para a qual se volta a fábula delibesiana e também a de Pérez-Reverte e a de Vázquez Montalbán: contra a intolerância e a favor da liberdade de consciência. A aceitação do outro, a extinção da lógica da violência, a exclusão de tantas outras manchas só vão acabar se e quando as novas gerações forem educadas para conviver com todas as culturas. E quando entendermos, por fim, que o “outro” somos todos nós.

Na convergência da leitura desses três escritores espanhóis, às vésperas de um novo milênio, não vejo um anjo concentrado, com as asas encolhidas sobre si mesmo, como se temesse o vôo. Vejo, sim, o anjo que, observando as catástrofes do passado, não se deixa ficar imerso no presente; e se lança ao vôo apesar das trevas e da tormenta. Esse anjo consegue arrancar-se da contemplação e diante da realidade da prevalência de uma utopia individual, abre suas asas em busca de uma consciência moral universal, de um ponto mínimo que projete luz sobre o futuro, na forma de uma utopia coletiva que privilegie o bem comum e respeite as individualidades.

 

 

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

 

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