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Para
Miguel Delibes em seu 80° aniversário de nascimento
Minhas asas estão prontas para o vôo.
Se eu pudesse, retrocederia
Pois eu seria menos feliz se permanecesse imerso no tempo vivo.
Gerhard Scholem
A
mi juicio, el primer paso para cambiar la actual tendencia del
desarrollo [...] radica en ensanchar la conciencia moral universal.
[...] Esta conciencia, que encarno preferentemente en un amplio sector
de la juventud que ha heredado un mundo sucio en no pocos aspectos,
justifica mi esperanza.
Miguel Delibes
O
fim do Século XX encontra a língua espanhola numa situação de tal
esplendor que faz pensar em tempos dos Reis Católicos, época em que
navegantes e todo tipo de conquistadores,
fizeram com que ressoasse esse idioma, já então senhor de uma gramática,
pelos quatro cantos da Terra. A comparação prende-se apenas, é bom que
se diga, ao fato de que, hoje, cerca de 400 milhões de pessoas falam
espanhol no mundo. A pujança atual do espanhol deve-se, entretanto, a razões
bem diferentes às daquela época em que se iniciava o período de
hegemonia da Espanha. Penso que uma delas é a diáspora provocada pela
pobreza de muitos hispano-amercianos que se lançam em busca de melhores
condições de trabalho e de vida, em precários barcos, na guagua aérea,
nas caminhadas por trilhas noturnas, nas braçadas em busca da outra
margem, rumo a outros territórios
e a novas esperanças, os dólares da sobrevivência que os esperam nos
Estados Unidos, no Canadá, na Austrália. É bem diversa a natureza dessa
expansão. Seja como for, dilata-se a fronteira em língua espanhola e
hoje em dia já não é o Rio Grande, na América do Norte, o divisor
entre o território de língua inglesa e o de língua espanhola,
por exemplo, já que são cerca de 27 milhões os mexicanos que estão
ao norte do Rio Grande. Não quero deter-me nessa questão específica na
minha fala de hoje, mas sim, buscar inserir-me no tema que orienta a
organização deste evento de cuja participação muito me honro. Cabe-me
comentar algumas questões relacionadas à literatura espanhola neste
final de século que é também a véspera de um novo milênio, pois a
literatura é, indiscutivelmente, uma extraordinária representação da
pujança de um idioma. O que se produziu antes de 1492, na Hispania, dá
visto bom a essa minha afirmação Pensando em tudo isso, quero deter-me
em algumas questões relativas à literatura espanhola da década de 90,
numa tentativa de dar a conhecer parte de minhas reflexões sobre alguma
obras produzidas recentemente na Espanha, seguindo uma via escolhida como
tema de uma pesquisa mais ampla: “A literatura na virada do século: fim
das utopias.
O
ensaísta espanhol José Angel Valente, no artigo: “El fin del milenio y
el ángel de la historia” assinalou como característica deste fim de século
e de milênio (negativa, segundo afirma) a acusada tendência “a la fusión
de todas las perspectivas en una sola”, a utopia do neoliberalismo que
pretende impor sua própria concepção de mundo a todo o planeta,
consolidando a referida utopia como pensamento único: o da globalização
a instalar a lógica da competição em detrimento do que ele chama de
“bem comum”, ou seja, uma utopia coletiva. E completa seu raciocínio
apontando para o fato de que tudo isso resulta na explosão das
desigualdades, no maciço retorno à pobreza e ao desemprego, fatos que
nosso olhar fiel ao referido
“bem comum”, conhece de sobra.
Há
muitos anos o escritor espanhol Miguel Delibes denuncia em sua obra as
brutais conseqüências de um progresso que põe o cidadão no coração
de uma devastadora crise, feita de incertezas e de opacidade. Delibes
sublinha vivamente essa denúncia, em 1975,
no discurso de ingresso à Real Academia Española ao afirmar que
“el hombre sigue empeñado en bloquear su propia salida a la esperanza”
(1993, p. 14). Filtra-se aí uma preocupação solidária, que se impõe
como forma de resistência e também como busca de luz em um presente
sombrio, um tempo em que, tal como na frase de Tocqueville, o passado
deixou de iluminar e o presente caminha entre trevas (2000,
p.38 ).
No Brasil conhecemos muito pouco sobre as questões históricas da Espanha
do século XX, país não industrializado nas primeiras décadas que, pela
neutralidade na primeira guerra mundial, foi convidado a sentar-se à mesa
das negociações, assumindo o importante papel de árbitro internacional
do conflito. Na década de 30, nesse país de tantos contrastes nas mais
diversas instâncias, eram vários os níveis de um jogo político intenso
em que atuavam republicanos, monarquistas, anarquistas, a força dos
militares, além do peso do clero no cotidiano do povo espanhol. Importa
registrar que nesse caldeirão em que iam fervendo os fatos que
resultariam na guerra civil, em 1936, havia uma esquerda que era o sonho
de todas as esquerdas com seu projeto de reforma agrária e educacional. A
Espanha era vista pelo mundo como um país inovador: ali surgia a utopia
de um mundo novo onde todas as pessoas são iguais e têm responsablidade
sobre o próprio destino.
A guerra civil espanhola reuniu muitos estrangeiros movidos pelos
acontecimentos na Espanha, que não se apresentavam como voluntários na
defesa do disputado jogo de nacionalidades. Na raiz de sua motivação, além
da luta contra o fascismo que ameaçava engolir a Europa, havia uma razão
maior: ao alistarem-se nas Brigadas Internacionais, cidadãos de várias
origens integravam-se ao corpo de defesa da utopia que a Espanha vivia então,
em uma ação conjunta de ajuda na construção de um mundo novo, numa
solidariedade inédita na história da Humanidade, à que foi, tal como
declarou a Professora Marcia Motta, em palestra no Instituto de Letras da
UFF, em abril de 2000, a
maior utopia do século XX. É possível que seja essa a explicação para
que a memória da guerra civil espanhola permaneça viva em todo o mundo,
através das mais diversas manifestações artísticas. |
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Todos
sabemos que a literatura espanhola, em grande parte do século XX, foi marcada a
ferro e fogo pelas circunstâncias decorrentes da brutal interrupção desse
processo, com a vitória de Franco
e seus aliados sobre os republicanos que não conseguiram manter-se unidos.
Instalavam-se os “tiempos de hambre y de escasez” e, principalmente,
a opressão franquista. Os escritores que viveram a guerra civil, de 1936 a
1939, muitos deles da conhecida “generación de los niños de la guerra”,
outros já adolescentes durante o conflito, uma década após a subida de Franco
ao poder, encontraram uma maneira própria de escrever, dialogando com o silêncio
imposto pelo autoritarismo, driblando-o e, mesmo, denunciando-o, numa luta para
garantir o direito à palavra, quer dizer, à liberdade. Alguns desses
escritores permanecem em produção na década de 90.
Ao
lançar um olhar sobre a produção ficcional de escritores espanhóis no fim
deste século, meu propósito é o de verificar até que ponto a grande utopia
do período pré-franquista e franquista permanece viva, ou que outra utopia se
impõe no momento em que a globalização é a palavra de ordem, e até mesmo se
ainda é possível pensar-se na existência de alguma utopia. Para onde aponta e
por que razão aponta nessa direção a Literatura Espanhola deste fim de século?
Nesse sentido, mais que listar nomes de autores e de obras, detenho-me, em três
escritores de gerações diferentes mas atingidas, todas, pelo autoritarismo
ditatorial, egressos do jornalismo
e em produção na década de 90. São eles: Miguel Delibes, nascido em 1920, em
Valladolid; Manuel Vázquez Montalbán, nascido no ano do fim da guerra civil
espanhola, 1939, em Barcelona e, por fim, Arturo Pérez-Reverte, nascido em
Cartagena, em 1951. As obras de referência (não as únicas, naturalmente) são
o romance de Delibes, El Hereje,
publicado em 1998; de Vázquez Montalbán, a Autobiografia
do General Franco, publicada em 1992; de 1997 é Limpieza de Sangre, de Arturo
Pérez-Reverte .
Esse corpus
justifica-se, principalmente, pelo fato de Delibes e Pérez-Reverte
voltarem-se para os séculos XVI e XVII, respectivamente, período em que a
opressão exercida pela Inquisição estava no auge, na Espanha;
Vázquez Montalbán, ao tematizar Franco em uma autobiografia forjada,
detém-se num período recente da História da Espanha em que os procedimentos
inquisitorais eram postos em prática em nome de uma assim chamada “cruzada”
nacional. Ao relacionar esses três narradores a partir, basicamente das obras
elencadas, penso já estar adiantando uma observação imediata no que diz
respeito a uma volta ao passado mais próximo ou mais distante, uma forma de
repensá-lo e assim, pensar o próprio tempo pois que levaria três escritores
espanhóis, de diferentes gerações, a voltarem-se, na última década do século
XX para um passado marcado pela opressão e pela intolerância?
Impossível não recordar
aqui a tese de Walter Benjamin sobre o quadro
Angelus Novus, de Klee,
que representa um anjo aparentemente prestes a afastar-se de alguma coisa que
contempla imóvel, olhos fixos, boca aberta, asas estendidas. Afirma Benjamin:
“O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o
passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe
única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés.
Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos, e juntar os fragmentos. Mas uma
tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não
pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro,
ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu.
Essa tempestade é o que chamamos de progresso”(1986, p.226)
Isso posto, lanço meu olhar
sobre o silêncio e o autoritarismo no século XVI, através de El Hereje, romance de 1998 já em sua 18a. edição;
ambientado no período em que há o cisma na Igreja Romana do
Ocidente, na Valladolid cenário de quase toda a obra de Delibes, estabelece um
diálogo entre duas épocas em que a intolerância, as guerras religiosas e
outras formas de violência mantém-se no centro da cena. Ao criar um personagem
nascido em 1517, mesmo ano em que Lutero fixa suas teses contra as indulgências
na porta da Igreja de Wittenberg, o autor discute
uma constante delibesiana: o respeito à liberdade individual, ética que
tem, em El Hereje uma frase síntese
quando o personagem central, Cipriano Salcedo suplica a Jesus que lhe dê algum
sinal sobre o caminho a seguir, alguma luz para as suas inúmera perguntas:
“Pero Nuestro Señor permanecía en silencio y, al mostrarse mudo
estaba respetando su libertad”(p. 488)
A
narração introduz o ambiente do século XVI, da Espanha de Carlos V e Felipe
II, voltada sobre si mesma, de um catolicismo fanático e reprimido, período em
que se dá a volta definitiva na ortodoxia. Entretanto a feroz intransigência,
acentuada em tempos de Felipe II, afastou a Espanha da consciência moderna que
surgia na Europa de então, que começava a pensar por si própria, sem a tutela
da Igreja Católica
Nesse
romance de corte histórico, prevalece a ficcionalização no desdobramento de
uma fábula que vai expor questões
que são do século XVI e permanecem vivas no século XX, como a dos
trabalhadores sem terra, a tendência à emigração, os desempregados no longo
inverno da Meseta, o trabalho ocasional mal pago, temas
vivos até mesmo na rica Espanha do fim deste século e em tantas outras
partes do mundo. Ao mesmo tempo, a
promiscuidade na urbana Valladolid do XVI, torna-a campeã em sífilis, o que
traz à cena os perigos de uma relação
carnal, 500 anos antes da aids. A atualidade dos temas conduz-nos à questão da
utopia, pelo curioso deslocamento
temporal na obra de um escritor que sempre repensou seu próprio tempo e expôs,
clara e coerentemente, a sua própria utopia.
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Delibes
faz, a sua maneira, esse balanço de fim de século a que se refere Baudrillard.
Aí vão-se enfileirando as questões que estão vivas e se a referência é o século
XVI, isso não só não impede que venha à tona o que é a marca do século XX,
como também funciona como denúncia e cobrança por todos esses séculos de
desinteresse, abandono, indiferença que resultaram na permanência da opressão
em seus mais variados modelos. Na contramão das tendências de apagar da memória
os acontecimentos negativos, Delibes segue fiel à certeza da necessidade de
mantê-los vivos para que não voltem a acontecer, escapando assim à denúncia
de Baudrillard de que vemos hoje que tudo o que aconteceu neste século, em
termos de progresso, de liberação, de revolução, de violência está a ponto
de ser revisado no bom sentido.
Salta
ao olhar leitor a isenção do narrador na tarefa de contar, na recuperação de
um quadro particular que se universaliza na dimensão humana desenhada e também
a minuciosa e exata recriação das complexidades das relações inquisitoriais.
Cipriano Salcedo em sua busca, em suas inquietações e em sua ética, é o
homem constantemente ameaçado por tentar um caminho próprio e ousar buscar
respostas nos princípios de Lutero, o que termina por mergulhá-lo no
isolamento, na solidão, no silêncio das masmorras, na morte na fogueira. O
narrador, ao fazer crepitar a ação das chamas no corpo miúdo de Cipriano
Salcedo, o mesmo fogo da feroz intolerância
que consumira na Itália Giordano Bruno e tantos outros personagens de um
longo período inquisitorial, reconduz ao centro da cena fatos que não podem
ser esquecidos, que a memória precisa manter vivos para que não se repitam.
Nessa
vertigem de terra devastada, El Hereje
estabelece um tenso diálogo com alguns dos temas cruciais do século XX. A voz
narrativa desenha as cavernas do horror abertas pela Santa Inquisição na
Valladolid de Carlos V e Felipe II e estabelece-se um diálogo com tantas outras
cavernas de crueldade, de “maldad insolente”,
para repetir a expressão usada no conhecido tango argentino, o genocídio
e as infinitas barbaridades que arruinaram o planeta, acentuaram a exclusão
social, num século que, para muitos, esgotou o tempo das utopias.
Na seqüência narrativa, ao revisitar essa prática cruel da história
da humanidade, os autos de fé, o narrador vai fazendo com que os fatos
reconstruam a ação enquanto o quadro particular que propõe se universaliza.
Importa resgatar a frase emblemática com que Don Ignacio Salcedo, destacado
membro da Corte valhisoletana, católico piedoso, despede-se do sobrinho
Cipriano a caminho do julgamento que o levaria a morte na fogueira do auto de fé:
“Algún día esas cosas serán
consideradas como un atropello contra la libertad que Cristo nos trajo. Pide por
mí, hijo mío.(p.462)
Miguel
Delibes, ao valer-se de tons e dissonâncias do século XVI espanhol, compõe
com El Hereje um canto à liberdade de
consciência, reafirmando, na coerência
de toda a sua obra, a certeza de que há uma utopia coletiva a defender
ainda neste fim de século XX, a que privilegia as individualidades sem perder
de vista o bem comum.
Em outra perspectiva situa-se Augusto Pérez-Reverte, escritor de produção
intensa, fenômeno de vendas no mundo hispânico, mas olhado com desconfiança
pela academia. Repórter de guerra
durante 21 anos, deixou esse ofício para dedicar-se à elaboração de uma já
vasta obra literária. Seu personagem mais conhecido é Diego Alatriste, el
Capitán Alatriste, um soldado veterano das guerras de Flandes, que vive do
soldo de espadachim mal pago na Madrid do século XVII. Na reorganização do
universo histórico e social em Limpieza
de Sangre, através de inúmeras e perigosas aventuras de capa e espada,
vamos imergindo nas intrigas não menos perigosas da Corte, numa Espanha corrupta e decadente. Na obra de
Pérez-Reverte,
de corte histórico como El Hereje,
de Delibes, articulam-se personagens e fatos ficcionais, como as guerras de
Flandes, a Inquisição, questões
políticas, fragmentos de poemas de Quevedo, personagem de expressiva atuação
na fábula, Lope de Vega e suas comédias, numa
articulação que vai enredando Diego Alatriste com uma “corte de
funcionários venales y curas fanáticos bajo la mirada indiferente del cuarto
Austria” (p. 218), além da vasta gama de pessoas que compunham o povo
madrilenho de então. Na
apresentação da Espanha do século XVII, percebe-se a relação implícita que
se estabelece com a Espanha atual e um certo tom de piedade pelo que dela foi
feito: “Pues, desde siempre, ser lúcido y español aparejó gran amargura y
poca esperanza”, (p.235). Uma das razões para essa afirmação está embutida
no que o narrador comenta sobre um mundo venal, feito de hipocrisia e boas
maneiras, em que “los poderosos,
los buitres, carroñeros, los envidiosos, los cobardes y los canallas suelen
encubrirse unos a otros. Dios nuestro señor los crió a todos y estos fueron
juntándose desde siempre y bien a su manera en nuestra infeliz España”
(p.233)
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É
curioso observar a manifesta consciência de um traço muito espanhol, em
Limpieza de sangre, algo que marca culturalmente a Espanha ao longo dos
tempos: a fidelidade a si própria. Sempre que a Espanha se abre para o novo,
aferra-se ainda mais a suas raízes, numa fidelidade ao espírito nacional que
se expressa nas mais diversas manifestações culturais
através de “elementos constantes,
‘de raça’, a denunciar permanência do passado, compromisso com a
geografia local”. Essa conclusão, que seria em parte a tese defendida por
José Carlos Lisboa (1961, p. 9) depois de volumosa documentação levantada nas
mais variadas e fidedignas fontes, está reafirmada em Limpieza
de sangre, a propósito do interesse que despertava em todo o corpo social o
auto de fé: “Aquella España desdichada, dispuesta siempre a olvidar el mal
gobierno, la pérdida de una flota de Indias o una derrota en Europa con el
jolgorio de un festejo, un Te Deum o unas buena hogueras, oficiaba una vez más
de fiel de sí misma” (p. 230).
Pérez-Reverte brinca, aparentemente, com a corrupção e a crueldade de uma
corte sórdida e revela uma sociedade amorfa pelo que dela fazem os maus
governantes, anulando-lhe vontade, ânimo, espírito crítico, mantendo-lhe vivo
o temor pela ameaça constante do mega-espetáculo perversamente circense dos
autos de fé, uma sociedade de gente essencialmente boa. Comenta o narrador que
desde os tempos de El Cid, já o
cronista anónimo registra o que a Espanha tem de bom: seu povo, gente que
sempre deu o melhor de si própria, inocência, dinheiro, sangue, trabalho mal
pago. Recorda os versos do famoso poema épico: “Qué buen vasallo que fuera,
si tuviese buen señor”. E adverte que outra teria sido a história do que
chama de “nuestra desgraciada España”, se prevalecessem os impulsos do povo
frente à aridez das razões do Estado, à venalidade e à incapacidade dos
políticos, nobres e monarcas. Com essas críticas e reflexões, o narrador traz
a fábula aos tempos atuais e propõe, claramente, um severo balanço sobre o
tempo em que vivemos.
Se Miguel Delibes e Pérez-Reverte voltam-se para os séculos XVI e XVII
respectivamente, Manuel Vázquez Montalbán detém-se no século XX, quando uma
outra inquisição se abateu sobre a Espanha, ao elaborar uma fraudada Autobiografía
del General Franco, que permite ao leitor apreender, também, na recriação
de sua memória, o narrador/personagem/autor contratado da dita autobiografia, o
alter-ego de Franco: Marcial Pombo. O
personagem de que se vale Vázquez Montalbán oferece uma inusitada visão
plural do Generalísimo Franco e
propicia o questionamento do papel dos historiadores em relação à
interferência de uma visão histórica que, ao deter-se nas linhas gerais,
enfraquece a real dimensão dos fatos.
Desdobram-se, nessa autobiografia, duas metas: a do franquismo e a do
anti-franquismo, uma vez que se o fictício Franco expõe suas razões e ideais,
o contraponto se levanta a cada momento e, na recondução dos fatos às dimensões da ótica oposta por Marcial Pombo, o leitor
acompanha o longo e complexo desdobramento do processo utópico de fazer da
Espanha o país modelo para o mundo, tal como o concebiam Franco e a Falange.
Se no romance de Miguel Delibes se problematiza a questão da crise da
Modernidade, a visão fanatizada dos Áustria que fecha a Espanha, colocando-a
à margem de uma nova mentalidade, Manuel Vázquez Montalbán, põe a nu como
Francisco Franco, séculos depois atrasa por anos a Espanha em relação ao
progresso do mundo contemporâneo, mantendo o país fechado sobre si mesmo.
Tal como na crônica “Os
gritos de Giordano Bruno”, do português José Saramago, escritor também
comprometido com a questão da liberdade humana, Vázquez Montalbán
revela a preocupação de que os dicionários enciclopédicos virtuais, dentro
de 50 anos, forçados pela objetividade histórica, achatem o que é fundamental
recordar, reduzindo os fatos, a “quatro imagens, quatro gestos, quatro situações
e uma voz em off” ( p.621). Nessa direção aponta o original procedimento
narrativo dessa obra de 621 páginas que, ao trabalhar com diferentes vozes,
entrelaça ficção e história e chega a discutir a realidade da Espanha, agora
européia; é o caso por exemplo da recuperação de fatos recentíssimos,
referidos “en passant”; que,
embora ficcionalizados, dão conta, de como o jovem espanhol de hoje lida com a
questão do movimento operário, as
questões surgidas na raiz da nova realidade advinda da integração da Espanha
à Comunidade Européia. O foco de luz se
desloca da juventude das décadas
de 50 e 60 para a do fim de século XX. Cerca de 40 anos mais tarde, oferece-se
ao olhar leitor a atividade de recuperação da cultura crítica pelos jovens, a
resistência intelectual na busca solidária do direito à liberdade, a luta
mantida pelo próprio Marcial Pombo em defesa dos mineiros de Astúrias num
contraste com a figuração dos jovens dos anos 90, através dos filhos de
Marcial Pombo, uma pobre drogada, com tendências suicidas e um rapaz que nunca
deu outro tipo de problemas, a não ser os “ideológicos” (p.21); “[...]
advogado técnico do Estado que atualmente
colabora com o governo no plano de desertificação trabalhista das Astúrias,
região da Espanha de aguerrida memória social, ao que parece condenada pelas
regras do jogo do que outrora se chamou de divisão internacional do trabalho”
(p. 21). Diante da lembrança de Marcial Pombo, ao recordar que em 62 fora para
a prisão por sua solidariedade aos mineiros das Astúrias, respondeu-lhe o
filho que sua solidariedade é “universalista e macro-econômica” (p.21).
Fica a pergunta: ao contar e documentar todos esse fatos que o apresentam
como um vencido, um derrotado, não estará Marcial Pombo contribuindo, com seu
testemunho e sua memória, para manter vivo o que os futuros verbetes minimizarão,
numa forma de resistência, dando uma resposta aos que o crêem derrotado em sua
esperança de um homem melhor? São algumas das questões que se explicitam na
obra de VázquezMontalbán: Franco, diante da inexorabilidade da morte,
permanece consciente do que foi, uma ironia que lhe reserva a “vingança”
autobiográfica de Marcial Pombo. O corpo quase putrefato grita seu valor frente
à solidão da morte, não o grito de indignação de um homem solidário, como
Cipriano Salcedo ou Giordano Bruno, na defesa da liberdade, mas o de um homem
que, no século XX, atrasou todo um país, por quase quatro décadas.
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Da
obra dos três romancistas, filtra-se uma crítica contundente à qualquer forma
de violência e também, um aceno de esperança. Na volta ao passado, os
narradores discutem, por refração, o próprio século XX e dialogam com a epígrafe
desta comunicação. Nessa retomada, insere-se a afirmação do escritor
argentino Marcus Aguinis de que a melhoria do século XXI não depende de
“buena suerte”, mas de homens e mulheres que tenham coragem para reverter
tudo isso, ao mesmo tempo em que aponta na direção para a qual se volta a fábula
delibesiana e também a de Pérez-Reverte e a de Vázquez Montalbán: contra a
intolerância e a favor da liberdade de consciência. A aceitação do outro, a
extinção da lógica da violência, a exclusão de tantas outras manchas só vão
acabar se e quando as novas gerações forem educadas para conviver com todas as
culturas. E quando entendermos, por fim, que o “outro” somos todos nós.
Na
convergência da leitura desses três escritores espanhóis, às vésperas de um
novo milênio, não vejo um anjo concentrado, com as asas encolhidas sobre si
mesmo, como se temesse o vôo. Vejo, sim, o anjo que, observando as catástrofes
do passado, não se deixa ficar imerso no presente; e se lança ao vôo apesar
das trevas e da tormenta. Esse anjo consegue arrancar-se da contemplação e
diante da realidade da prevalência de uma utopia individual, abre suas asas em
busca de uma consciência moral universal, de um ponto mínimo que projete luz
sobre o futuro, na forma de uma utopia coletiva que privilegie o bem comum e
respeite as individualidades.
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