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Este
trabalho analisa uma das possibilidades de sobrevivência da imortal Idade
Média, através do imaginário de dois pintores flamengos, Hieronymus
Bosch (1450-1516) e Pieter Bruegel (1525-1569) e do escritor espanhol Juan
Ruiz, cognominado Arcipreste de Hita. Estes artistas do pincel e da pena
servem de elo para atualizar o que Jacques Le Goff afirma: história
é transformação e memória, memória de um passado que não deixa de
viver e de mudar sob os olhares de sucessivas sociedades (Le Goff,
1994, p.23).
Na
obra miscelânica de mais de sete mil versos,
Libro de Buen Amor, de Juan Ruiz (DE HITA, 1984), a narrativa se faz
na poética da equivocidade, no duplo sentido, na ambigüidade semântica,
ao apresentar uma mistura dos aspectos mundanos, religiosos e morais. Em
meio a picardias, burlas, filosofias e lamentações, sente-se seu veio
divertido e moralizador, quando se pode observar um amplo repertório de
possibilidades amorosas, onde o fio condutor ziguezagueia entre o amor
espiritual e o amor carnal.
O
narrar oscila em torno de uma autobiografia fictícia em que o autor se
apresenta como um galã, em meio a numerosas possibilidades amorosas. A
pastora, a grande dama, a solteira, a casada, a moura, a religiosa são
emolduradas por uma sucessão numerosa de variados personagens.
No
decorrer do contar, alegre e divertido, onde os provérbios brotam em
profusão, com forte apelo ao campo zoormófico, Juan Ruiz, como todo
homem medieval, submetido à luz e à sombra da época, o denominado claro-oscuro,
tem sobre si o Na verdade, com sua forte crença religiosa, com convém
ao homem da Idade Média, acena, o Arcipreste, para a escolha do caminho
do bem, acreditando no perdão divino, no exercício do menosprezo dos
pecados terrestres.
No
tom didático e na ambigüidade carnavalesca que marcam o discurso poético
de Juan Ruiz, o leitor intui várias intenções, a começar pela crítica
à castidade profunda, já que, ensina o Arcipreste, a atividade amorosa
é direito de todos. Tudo está sujeito ao buen
amor posto em confronto com o
loco amor. Buen amor seria o amor são, lícito, honesto, de Deus, que
enobrece, que transfigura, que rejuvenesce, que transforma defeitos em
virtudes. E o loco amor, o
insano, não lícito, das fronteiras do adultério, do incesto e da
bestialidade, ou seja, a luxúria. Nota-se, ainda, fortemente delineada, a
presença da morte triunfante caminhando com o
loco amor, a paixão pelos Diante disso, a obra indicia uma forte
ironia em relação às questões eclesiásticas e religiosas que se
estende ao campo social, tendo como foco, em suas críticas, os juízes,
os cavaleiros, o mundo cortesão e, principalmente, sem fugir ao caráter
ambíguo, a figura da mulher.
O
claro-oscuro que aponta o dedo
indicador para a mulher não se afasta dos milagres e das feitiçarias,
mas como obra carnavalizada, Libro
de Buen Amor se nutre do mundo às avessas não esquecendo, no seu
contar, os apelos à Virgem Maria.
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Vacila,
pois, o Arcipreste de Hita, entre o místico e o prazeres terrenos, uma
vez que o bem humorado autor começa o livro declarando que é inclinação
do homem amar as mulheres, principalmente, as chicas, o que não faz dele uma exceção. A propósito, o que pode ser efetivamente comprovado, quando está
por terminar o livro, no
primoroso poema Elogio
a la mujer chica.
A
polissemia constante embora torne a leitura difícil, faz com que seja
apaixonante e incite o leitor a decifrar os vários enigmas que propõe.
Manuel
Criado de Val em De la Edad Media al
Siglo de Oro (CRIADO DE
VAL, 1965) afirma que Juan Ruiz tem nos pintores flamengos Hieronymus Bosch e Pieter
Bruegel, seus melhores discípulos, a melhor síntese pictórica de sua
obra. De fato, retomam estes pintores, Bosch, aproximadamente um século
depois e Bruegel, dois séculos, a temática medieval, cheia de utopias e
temores, ancorada na moral e na religião, cenas do claro-oscuro,
no seu aspecto mais ambíguo, realizando, com maestria, em suas telas, uma
paródia de Libro de Buen Amor.
Com
relação à estrutura da paródia feita por Bosch e Bruegel, pode-se
considerar sua configuração em dois níveis. Primeiramente o que se
constrói na leitura dialógica com Juan Ruiz e seu Libro
de Buen Amor, quando aí se
observa a polissemia temática que salta aos nossos olhos. Bosch, no final
do século XV e Bruegel, em pleno XVI, pintam cenas e ambientes que estão
fora do seu tempo, já que se anuncia, ou mesmo, se vive sob a tutela do
Renascimento e da Escola Flamenga. Trazem, eles, de volta a Idade Média
com seu ponto de vista focado para o muralismo e o colorido dos vitrais góticos
e para a reminiscência da miniatura e das minúcias. No calor das fortes
luzes e cores iluminam-se cenas campestres e familiares, reveladoras da
vida cotidiana para falar de temas que não mais deveriam atemorizar ¾
os pecados, a morte e o medo do inferno.
Oscilam,
então, os famosos pintores, entre a tradição do gótico medieval, sem
sua elegância e delicadeza, e as inovações da pintura flamenga
renascentista, pautada na observação direta e objetiva do homem e da
natureza, através de símbolos e convenções.
O Jardim das Delícias Terrenas,
de Bosch, se consigna como um verdadeiro resumo feérico da mitologia e do
folclore da Idade Média, onde se entrecruzam
falsas donzelas, cavaleiros, clero, mendigos, penitentes, caminhantes,
imagens de santos, demônios, figuras grotescas, figuras esópicas,
verdadeiro resgate paródico do combate de Don
Carnal e Doña Cuaresma, os
emblemáticos personagens de Juan Ruiz.
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A
narrativa proverbial conta diferentes momentos na mesma composição,
sintetizando o destino do homem pecador, mostrando o caminho da salvação,
mas, ao mesmo tempo, ameaçando, conforme havia anunciado Dante na porta
do inferno: Lasciate
ogni speranza voi ch’ entrate.
O
leitor atento sabe ler, na pluralidade de cenas, um tom didático que
alerta o homem sobre seus pecados, mas que lhe mostra o caminho para a
salvação. Esta diversidade policromática exprime-se através de uma
iconografia fantástica, onde se alternam visões, superstições, símbolos
e alegorias.
O
tríptico recupera o retábulo gótico e dirige seu foco para o primeiro
pecado, o da luxúria, fortemente revelado nos painéis representativos da
existência humana: o lar do homem antes do pecado original, o céu, suas
atividades lascivas, a terra,
e o resultado de seus pecados, o inferno. Sob um céu, já não dourado
como nas pinturas góticas, incandescido pelo fogo do inferno, as figuras
se despem não só das vestimentas luxuosas, das pedras preciosas, mas
também da pureza gótica e, em meio a símbolos fálicos, se
mostram nuas e transfiguradas, revelando, Bosch, com uma ferocidade
caricatural, um mundo irreal por onde passam pesadelos que povoavam a alma
do homem medieval.
A
ambigüidade que norteou o caminho literário de Juan Ruiz não está
somente na produção de Bosch. A pintura aparentemente tranqüila e
inocente que recorre o mundo idílico da Era Medieval traz, na narrativa
pictural de Pieter Bruegel, verdades entrelinhadas no indiciante trabalho,
Provérbios Flamengos. A sua inspiração se detém no aspecto folclórico,
nos temas profanos e o pintor tinge sua tela de ilustrações visuais de
provérbios que ultrapassam seu tempo. Contempla-se nesta bela tela,
colorida, buliçosa, detalhadamente observada, o cotidiano das feiras, das
tavernas, das casas familiares, das igrejas, do campo.
Este
quadro, aparentemente despretensioso e popular, uma das faces da pintura
holandesa, anuncia que, enquanto a postura de dignidade do homem
renascentista, cheio de conhecimentos e de clareza se ancora no ideal
antropocêntrico, o povo continua na ignorância, perdido em meio às suas
tolices, aos seus credos, à mercê dos poderosos e dos oportunistas.
Pode-se
consignar que nos dois pintores desfaz-se, na escala de valores do
Renascimento, o conceito otimista de que o homem se basta a si mesmo,
enfocando-se o homem do povo, em prejuízo da aristocracia da corte, do
clero e da nobreza.
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Na
sua versão da história bíblica, a intrigante e complexa A
Torre de Babel sugere várias interpretações: Bruegel reafirma a
estupidez humana e sua presunção autoritária, proclama sua auto-suficiência,
elogia a cooperação entre os homens ou está apenas pintando o
desentendimento humano, reproduzido na caótica e inconclusa torre,
resultado de um gigantesco, formigante e desnecessário labor. Este
trabalho diverge do caminho tomado pela pintura flamenga, cujo olhar
focava a vida do interior das casas, dos objetos familiares, da paisagem
vista pela janela, dos retratos representativos da grandeza de caráter.
Tal
como Bosch, Bruegel se lança na crua realidade da vida com humor rude e
piedade ante a degradação humana. Ambos sabem desvendar os grandes
pecados dos homens, a luxúria, a gula e a ganância e, assim, focar em
primeiro plano o homem. Seus painéis moralistas são exemplos da insistência
flamenga em expor a insensatez dos vícios humanos.
Na
leitura transcontextualizada de Juan Ruiz, o descodificador percebe que
também nos quadros dos citados pintores, o dialogismo adquire uma
finalidade satírica, ridicularizando práticas e costumes contemporâneos,
entretendo, mas alertando e instruindo os homens sobre a existência
humana no plano social e pessoal. Eis o âmago da questão: no palco lírico
da natureza de percepção flamenga, a mentalidade mística e visionária
medieval adquire a mentalidade racionalista e científica. O homem é o
centro, o tema é o homem. Estamos de volta ao Renascimento.
As
pinturas de Bosch e Bruegel seguindo o “canto ao longo de” da paródia
de Libro de Buen Amor prolongam,
até nossos dias, um viés normativo,
calcado nos códigos da moral e dos bons costumes, que se evidencia
na memória da cultura hispânica, tão bem ilustrados pelo medieval Juan
Ruiz.
A
natureza pródiga faz parte do universo pictoral de Bosch, cheio de
plantas e animais familiares e desconhecidos, integradores de utopias da
época medieval, de paz, de abundância e de simplicidade. O caprichoso
Bosch, realista no detalhe, surrealista no conjunto, sobrevive na pintura
surrealista moderna, efetivando-se, destarte, a cadeia de ligação entre
a Idade Média e a Era Moderna.
Neste
fim de século, quando queremos intercambiar, cada vez mais, conhecimentos
e experiências, a teoria de recepção nos diz que tais artistas
conseguiram expressar a dicotomia entre o ideal e a fragilidade humana.
Suas memoráveis obras, por seu caráter vanguardista, ressoam e se abrem
para o diálogo, nos permitindo pensar, às portas do terceiro milênio,
questões da realidade atual, ainda cheia de grandes convulsões sociais e
políticas, mas que continua alimentada por sonhos, lendas e utopias.
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